De volta aos céus: o improvável retorno de um dos mais raros papagaios do Brasil

Os papagaios de número 44460 e 44461 ainda não sabem, mas estão a ponto de conhecer a espécie humana — com tudo de traumatizante que isso representa. É fim de tarde, a chuva de ontem deixou um brejo no chão, e Leco já cravou as botas no jovem guanandi cujo tronco irá escalar até a altura de 15 metros. Bem onde, há 55 dias, os dois irmãos alados vieram ao mundo.
Eles sobreviveram a gambás, gaviões e caninanas, mas não escaparão às mãos habilidosas de Alescar Cassilha, ou Leco: bastam poucos segundos, e os dois filhotes, um de cada vez, vão parar dentro de um saco que desce até o solo, onde outras mãos os esperam.
Podem ser as de Elenise ou as de Deise, não importa: o trauma é o mesmo, e a ele os papagaios respondem com gritos e bater de asas. O de número 44460 é o mais exaltado; 44461 parece mais dócil. “Deve ser fêmea”, diz Deise. Não dá para saber: papagaios-de-cara-roxa não têm dimorfismo sexual; só exame genético para descobrir.
Mas agora o que interessa é saber se estão saudáveis, ao que se segue uma minuciosa avaliação na qual são medidos bico, cauda, asas e tudo o mais, além de coleta de penas e pesquisa de parasitas. Os dois irmãos não sabem ainda, mas ao fim dessa experiência vão ganhar um presente: uma anilha cada um, que é a garantia de que, se forem pegos pelo comércio ilegal, possam ser devidamente identificados.
Embora a anilha tenha pinta de tornozeleira e os dois carreguem números que parecem de prisioneiros, esses papagaios são aves livres. E, segundo Elenise, “já estão prontas para voar”. Traumas à parte, melhor maneira de conhecer a espécie humana não há.

No caminho da extinção
Estamos na Ilha Rasa, litoral do Paraná, palco central deste anfiteatro natural que é a Baía de Paranaguá, onde as montanhas da Serra do Mar envolvem o Atlântico num abraço rochoso. Lugar protegido, portanto, e como tal um dos preferidos do papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), ave endêmica deste que é o maior trecho de Mata Atlântica preservada do Brasil – quase 3 milhões de hectares de floresta contínua junto aos litorais de São Paulo, Paraná e Santa Catarina.
A área é grande, mas os papagaios são poucos: 9 mil exemplares na natureza, segundo o último censo, concentrados em uma dúzia de dormitórios coletivos. É um habitat bem específico, e não por acaso o mesmo do guanandi (Calophyllum brasiliense), sua árvore predileta: planícies costeiras resultantes dos sedimentos da Serra do Mar, forradas por manguezais e restingas. Ou seja, solos rasos e arenosos onde o guanandi é das poucas árvores que conseguem cavar raízes fortes o suficiente para se elevar a até 30 metros de altura.
Ocorre que o guanandi também tem sido a árvore preferida das comunidades litorâneas. É das melhores madeiras para a construção de vigas, assoalhos, móveis e, sobretudo, mastros e cascos das mais diversas embarcações. Caiçaras sempre usaram o guanandi, leve e de difícil apodrecimento, no fabrico de canoas, enquanto a Coroa portuguesa fez dela valiosa matéria-prima para sua frota de navios – tão boa que absorvia balas de canhão sem danos à estrutura. Foi uma das primeiras madeiras de lei no Brasil. Era o mogno da costa brasileira. E, tal como o mogno, entrou em processo de extinção.
É no guanandi que o papagaio-de-cara-roxa dorme, nidifica e faz suas refeições. Não é a única, mas é a favorita. Enquanto a copa ampla e alta fornece abrigo seguro, o fruto é rico em proteína e minerais. Além disso, o tronco do guanandi forma ocos naturais que são perfeitos para se fazer ninhos, como é de praxe entre psitacídeos.
Árvores antigas são as que dão os melhores ocos – e foram justamente essas que começaram a desaparecer na mesma velocidade com que o papagaio-de-cara-roxa se tornava uma das aves mais raras do Brasil. Enquanto os melhores guanandis eram cortados, sobravam na mata apenas os mais deteriorados, o que facilitava o acesso de predadores aos ninhos e a inundação das cavidades pelas chuvas, afogando os filhotes.
Além do desaparecimento dos guanandis, também a captura contribuiu para a queda na população da ave, seja para a venda ilegal no tráfico de animais silvestres, seja para o consumo da população local, em particular nas comunidades mais remotas da Baía de Paranaguá (como a Ilha Rasa), onde o acesso à carne industrializada era raro. “Pessoal passava cola na árvore, papagaio grudava nela e eles pegavam pra comer ou pra vender”, lembra o pescador Antonio da Luz dos Santos, 80 anos, morador da Ilha Rasa há mais de cinquenta.
Com todas as ameaças, a população total de papagaios-de-cara-roxa chegou ao final do século 20 com apenas 5 mil indivíduos. Ou, como recorda Antonio, falando da Ilha Rasa: “só tinha quatro ninhos na mata que tinha papagaio”.


A solução: ninhos artificiais
Foi com certa antipatia que os moradores receberam, por volta dessa época, os pesquisadores da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), coordenados por Elenise Sipinski, quando estes começaram a se enfiar no que restava da mata de guanandis em busca dos últimos papagaios-de-cara-roxa da Ilha Rasa.
“Eu fui um dos que fui contra a SPVS aqui na ilha. Falei que, se eles entrassem aqui, ia meter tiro”, diz Eriel Mendes, conhecido como Nininho, na época presidente da associação de moradores. “Eles vieram com essa tal de proteção: não podia cortar madeira, não podia matar papagaio. O papagaio era a comida do povo daqui, né?”.
Nininho tinha também suas razões particulares. Chegara à Ilha Rasa no final dos anos 1980 para reocupar a casa abandonada pelo avô e fazer dela a base para suas buscas pelo ouro “do pirata francês” – um certo Olivier Levasseur que naufragara em 1718 na costa de Paranaguá e cujo barco supostamente portava um baú cheio de ouro. Como o tesouro nunca foi oficialmente encontrado, Nininho passou anos revirando a ilha à sua procura, até finalmente desistir e dedicar-se a cultivar frutas e verduras – para alegria dos papagaios-de-cara-roxa, que não deixavam sobrar nada do que Nininho plantasse. “Minha vontade era de acabar com o papagaio”, resume.
Mas, em se tratando de salvar o papagaio-de-cara-roxa da extinção, a Ilha Rasa era um destino inescapável para a equipe da SPVS, gostasse Nininho ou não. Além do fácil acesso, junto à costa de Guaraqueçaba, e de estar resguardada por uma Área de Proteção Ambiental, é dos raros locais que congrega ao mesmo tempo pontos de repouso e de reprodução dessa ave. Como diz Elenise, coordenadora dos projetos de fauna da SPVS, “aqui os papagaios estão mais concentrados; é mais fácil de monitorar”. O maior dormitório coletivo dessas aves na ilha é justamente vizinho ao terreno de Nininho.

A ação principal da SPVS, porém, acontece em outro lugar: nos sítios reprodutivos, localizados no interior da Ilha Rasa, onde as grandes árvores da Mata Atlântica costeira oferecem o abrigo necessário para que as aves instalem seus ninhos, entre setembro e janeiro. Como os ocos andavam escassos – justamente pela falta dessas árvores –, a solução foi construir ninhos artificiais: caixas de madeira suspensas no dossel, feitas sob medida para o papagaio-de-cara-roxa.
Foi nessa época que Antonio começou a trocar o mar pela mata, usando suas habilidades de carpinteiro, obtidas antes de virar pescador, para criar os primeiros ninhos artificiais do projeto. “Eu trocava 3 quilos de camarão por duas tábuas de construção e fazia as caixas”, lembra. Na prática, guanandis que iam virar casa voltavam para a mata em forma de ninho. “Falavam na época que não ia pegar. Mas um dia fui na mata e o filhote estava lá na caixa. Daí pronto, aquilo foi um caminho.” Antonio foi funcionário da SPVS e trabalhou para a organização por 23 anos, responsável por monitorar os ninhos junto com Leco.
Os primeiros 15 ninhos foram instalados em 2003, e, segundo Elenise, “foram 100% ocupados”. “O papagaio é um bicho muito esperto, muito observador. A gente achou que no primeiro ano eles iam ficar meio desconfiados, mas antes mesmo de começar o período reprodutivo eles começaram a ocupar os ninhos.” Diz ela que foi novidade até para os predadores: “A gente tem imagem de camera trap que mostra o gavião tentando entrar no ninho, mas ele não consegue”.

Com o apoio da Fundação Loro Parque, a SPVS instalou 111 ninhos artificiais na Ilha Rasa e em ilhas menores próximas, além de outros 18 no litoral sul de São Paulo, onde o projeto é coordenado pela Fundação Florestal. Nem todos são mais de madeira: nos últimos anos a SPVS vem testando ninhos de polietileno e PVC para avaliar a aceitação dos papagaios. Nesse sentido, eles são pouco exigentes: todos os ninhos são aprovados, e as aves chegam inclusive a brigar por eles, seja quando aparece um ninho novo, seja quando um casal mais jovem decide expulsar um mais velho. “Já vi papagaio rolando no chão”, diz Elenise.
Com a queda na predação, a garantia de ninhos seguros e a presença da SPVS inibindo a captura ilegal, o número de papagaios-de-cara-roxa começou a disparar, até chegar aos 9 mil atuais – cerca de 7.500 no Paraná e outros 1.500 em São Paulo. Em 2004, passou do status de “ameaçado” para “vulnerável” na Lista Vermelha da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza) e, em 2017, avançou para “quase ameaçado”. Nenhum animal no Brasil tem documentada tal façanha. E, em sua categoria na lista, é a única entre as espécies brasileiras cuja população está aumentando.
Desse tanto de papagaios, 1.500 deles estão na Ilha Rasa, o que já supera o número de moradores humanos, hoje cerca de 700, Como diz Elenise, “a ilha respira papagaio”. Sobretudo ao amanhecer e ao fim da tarde, quando se ouve seu alarido e se vê os casais atravessando o céu – é o momento em que saem ou voltam para os locais de alimentação, quase sempre no continente, aonde vão buscar frutas nativas da Mata Atlântica como jerivá, murici, araçá e embaúba (além, é claro, do próprio guanandi). “Tem literatura que diz que eles voam até 30 quilômetros atrás de comida”, explica Deise Henz, consultora de projetos de fauna na SPVS.


Nem tudo está bem
Se as revoadas diárias na Ilha Rasa sugerem uma população saudável, o mesmo não ocorre em seu maior dormitório, na Ilha do Pinheiro, hoje protegida pelo Parque Nacional do Superagui. Os números ali vinham registrando mais de 2.500 indivíduos; no censo de 2024, foram contados pouco mais de 450. O que aconteceu com os 2 mil que sumiram?
A SPVS suspeita do excesso de turistas, que chegavam em barcos de passeio, vindos da Ilha do Mel ou de Paranaguá com a barulheira habitual das aglomerações humanas, o que provavelmente espantou o papagaio-de-cara-roxa, fazendo com que se bandeasse para outro local. “O ideal seria que tivesse uma fiscalização integrada entre a Marinha, o ICMBio e a polícia ambiental, orientando os turistas no local”, sugere Elenise. Agora, resta procurar o novo pouso dos papagaios da Ilha do Pinheiro. “Eles devem estar usando outra área mais tranquila como dormitório. A gente acha que deve ser no interior do parque.”
Esses ao menos conseguiram fugir; outros não têm a mesma sorte, pois traficantes, ainda que em número reduzido, continuam rondando os litorais em busca de filhotes para vender no comércio ilegal. Um ninho foi roubado recentemente, inclusive. “A gente sabe porque o ninho tinha uma câmera; sumiu a câmera e sumiu o papagaio”, conta Elenise. “Infelizmente ainda tem gente que quer o papagaio em casa.”
As vinte câmeras cedidas pela Polícia Federal e instaladas junto aos ninhos mais vulneráveis ajudaram a inibir a captura ilegal, mas, segundo Rubens Lopes da Silva, delegado da Polícia Federal especializado em meio ambiente, o que mais tem dificultado o tráfico na Ilha Rasa é mesmo a presença da SPVS, que ele chama de “guerreiros”. “Você tem um aliado muito forte no front. A polícia não dá conta sozinha se não tiver o envolvimento do terceiro setor.”
Essa presença, vale ressaltar, vai muito além do monitoramento dos ninhos. Elenise fala do importante trabalho de comunicação que a SPVS vem fazendo ao redor da Baía de Paranaguá: “A gente vai nas ilhas, conversa com as pessoas, para sensibilizar e informar que essa espécie é nativa da região e se for roubada poderá desaparecer; é todo um processo que vai ajudando as pessoas a ficarem com mais medo de roubar um filhote. Não digo que acabou, mas posso afirmar que diminuiu”.
Rubens é menos otimista: “Pode ter diminuído, mas não acabou”. O delegado, que trabalha há 20 anos com tráfico de animais silvestres no Paraná, reconhece a queda nas capturas ilegais, mas sustenta que ainda há uma rede suficientemente ativa para alimentar a demanda no resto do mundo. Até porque, segundo ele, é uma ave fácil de capturar: “O papagaio é muito previsível. Todo ano ele procura o mesmo ninho. Além disso, ele grita, então não é muito difícil de encontrar. Os traficantes já têm todo um mapeamento dos ninhos”.


Nininho confirma: “Tem gente que ainda vende muito papagaio aqui na ilha”. Diz ele, inclusive, que os coletores estão usando a mesma técnica dos ninhos artificiais idealizados pela SPVS: “Eles serram a árvore onde tem o ninho do papagaio e colocam uma caixa no lugar. Ano que vem, o passarinho vai lá procurar a árvore, vê a caixa e faz o ninho ali. Aí eles vão lá e roubam o filhote. Tem muitas caixas dessas no mato.” Elenise diz que ainda nenhuma foi encontrada, mas Rubens não duvida dessa possibilidade: “Eles vão lá, aprendem a técnica e vão fazer igual em outro lugar da ilha ou numa ilha próxima, mais remota”.
Coibir o tráfico é uma contraparte crucial à implantação dos ninhos artificiais, mas nenhum projeto de conservação do papagaio-de-cara-roxa estaria completo se não houvesse também a recuperação de seu habitat. É por isso que a SPVS vem complementando o trabalho na Ilha Rasa com o reflorestamento de áreas no continente. São três RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural) nas redondezas onde cresce uma Mata Atlântica em processo de restauração sobre antigos pastos para búfalos.
A mais antiga, e vizinha à Ilha Rasa, é a Reserva Natural Papagaio-de-Cara-Roxa, criada em 1999, onde foram identificadas mais de 800 espécies de plantas e outras 280 de aves. Somada às outras duas RPPNs (das Águas e Guaricica), são 19 mil hectares conservados que rendem aos municípios de Guaraqueçaba e Antonina uma média de 10 milhões de reais anuais em arrecadação de ICMS Ecológico, investidos em saúde e educação. “Nada na região gera um retorno econômico tão importante quanto as três reservas”, diz Clóvis Borges, diretor-executivo da SPVS.

Florestas no lugar de pastos significam mais comida para o papagaio-de-cara-roxa, o que promove o aumento de sua população. Mais papagaios, por sua vez, potencializam a dispersão das sementes das mais variadas espécies da Mata Atlântica – sobretudo o guanandi –, favorecendo a multiplicação das florestas. Fecha-se, assim, o ciclo virtuoso que vem garantindo não só a recuperação da espécie como também a de seu habitat.
Isso explica o porquê de se dedicar tanto esforço e recursos no resgate de uma única espécie: salvá-la da extinção é apenas uma parte de um projeto muito maior, chamado Grande Reserva Mata Atlântica – um programa de desenvolvimento regional com base na conservação do maior remanescente contínuo do bioma mais devastado do Brasil. A ideia, nascida na SPVS, é estimular empreendimentos ecoturísticos em um mosaico de 110 unidades de conservação que se estende por quase 3 milhões de hectares entre São Paulo, Paraná e Santa Catarina.
“Quando você trabalha com uma espécie carismática como o papagaio-de-cara-roxa, você acaba trabalhando a conservação como um todo. Só tem papagaio porque tem floresta”, diz Elenise, apontando o papel vital que as ações de educação ambiental da SPVS vêm tendo na região, no sentido de reforçar aos moradores a importância da preservação. “A gente sempre fala: esse papagaio está aqui porque o ambiente está protegido, então ele acaba sendo uma espécie guarda-chuva.”
Como reforça o pescador Antonio, “a turma fala que o papagaio ajuda a natureza, né?”. E ele é testemunha: “Aqui na porta de casa tem um pé de guanandi que todo dia eles vêm comer. Tá forrado de semente que eles jogaram”. Não que ele também não faça sua própria contribuição: “Já plantei 197 mudas de guanandi no mato atrás de casa.”

Os ninhos de Nininho
Rubens reconhece que a comunidade caiçara da Ilha Rasa vem apoiando e colaborando com o trabalho da SPVS, e fala inclusive de moradores que antes trabalhavam como traficantes e que hoje defendem sua preservação, mas não esconde um receio: “Se a SPVS sair de lá um dia, eu acho que o tráfico retorna do jeito que era antes. Até mais sofisticado”.
“O tráfico para eles é um dinheiro fácil”, diz o delegado, comentando que, tradicionalmente, quem fazia a captura dos filhotes nos ninhos eram os próprios moradores da Ilha Rasa, já que a presença de um estranho seria facilmente notada. No passado, segundo ele, era comum que já houvesse um acerto prévio entre os traficantes e os ilhéus quando se aproximava a temporada de postura dos ovos. Isso garantiria uma renda sazonal, que hoje é inibida com a presença da SPVS e seu projeto de preservação.
Presença essa que, por sinal, talvez não tenha a aprovação unânime dos moradores, ainda que de forma velada. Corre à boca pequena, inclusive, a suspeita de que os pesquisadores estariam na Ilha Rasa em busca de, veja só, o ouro do pirata francês. “Pessoal diz que a SPVS trabalha com minério”, conta Nininho, apoiando-se numa tese, no mínimo excêntrica, de que o papagaio-de-cara-roxa conseguiria sentir a radiação de metais em suas patas. “Aí, onde o papagaio vai, eles descobrem onde tem radiação de ouro. Foi assim que falaram para nós.” Quando perguntado se acredita nessa tese, Nininho dá de ombros.
Isso vai de encontro à hipótese de Rubens de que, por mais engajada que a comunidade da Ilha Rasa esteja com o projeto da SVPS, “ainda não tem uma consciência de preservação formada” – ainda mais com as possibilidades de ganho com a captura ilegal. “A solução para acabar com o tráfico é oferecer outras alternativas”, sugere ele. “Se alguém investisse no turismo, em agricultura familiar, poderia ser uma solução. Mas você não vê nenhuma outra coisa substituindo o tráfico”.
Isso vai de encontro à hipótese de Rubens de que, por mais engajada que a comunidade da Ilha Rasa esteja com o projeto da SVPS, “ainda não tem uma consciência de preservação formada” – ainda mais com as possibilidades de ganho com a captura ilegal. “A solução para acabar com o tráfico é oferecer outras alternativas”, sugere ele. “Se alguém investisse no turismo, em agricultura familiar, poderia ser uma solução. Mas você não vê nenhuma outra coisa substituindo o tráfico”.
Clóvis Borges, da SPVS, reconhece a complexidade da situação na Ilha Rasa, alegando que se trata de “um lugar abandonado, sem o poder público presente”, e que “conservação não é só pesquisar, estudar e monitorar o papagaio”. Usando como o exemplo o fato de a SPVS ter introduzido a água potável na ilha nos anos 1990, puxada dos mananciais de uma de suas reservas, ele sustenta que, sem desenvolvimento local, a conservação não avança. Em outras palavras, “o que funciona é a narrativa de que o papagaio gera emprego e renda”.
Em resposta a isso, Clóvis cita a Grande Reserva Mata Atlântica, cujo plano é, justamente, impulsionar ações de desenvolvimento local focadas no turismo de natureza. A Ilha Rasa – e seus mais de mil papagaios-de-cara-roxa – é um dos laboratórios onde isso está acontecendo: “Estamos trabalhando com o papagaio para melhorar a qualidade de vida das comunidades a partir do atrativo que essa espécie pode trazer, fazendo parte de um roteiro. A ideia é que as pessoas vão para a Ilha Rasa para ver papagaio, não para comprar, nem para comer papagaio”.

É o que está acontecendo, quem diria, nas terras de Nininho. Depois de abandonar a busca pelo tesouro do pirata, ele desistiu da própria horta, aquela que tanto atraía os papagaios. “Agora estou plantando pra eles”, diz, referindo-se aos mais de 70 tipos de frutas que agora cultiva em seu quintal, a maioria daquelas que o papagaio-de-cara-roxa gosta — araça, ingá, jerivá, bacupari —, mas também maracujá, goiaba, laranja e tantas outras que servem de alimento tanto a aves quanto a humanos.
O resultado: um dormitório coletivo com mais de mil papagaios-de-cara-roxa em seu próprio terreno. Um dos maiores do Brasil. “Os papagaios começaram a vir demais. Acho que pensaram: ‘esse cara tá plantando pra nós’. Agora estão tomando conta daqui.” Para completar, Nininho apoiou a instalação de dez ninhos artificiais nos velhos guanandis que crescem atrás de casa, de modo que se tornou não apenas um dos principais parceiros da SPVS como ele próprio o maior exemplo do sucesso do projeto. “Ele e Tati [sua esposa] são excelentes parceiros do projeto”, diz Elenise.
Ecoando a fala do delegado Rubens, Nininho diz que “papagaio agora pra mim é lucro”. Conta ele que virou uma chave quando começou a ver turistas chegarem à Ilha Rasa para ver de perto essa que é uma das mais raras aves do Brasil. E, de quebra, conhecer um pouco da cultura caiçara. “Turista vem e passa o dia aqui, come nossa comida, anda pela ilha, vai na lama tirar ostra comigo”. Turistas estrangeiros, inclusive, pagando em dólar, que Nininho agora recebe em sua casa transformada em pousada, com nome em inglês: Nininho House.
Perguntado se ele finalmente achou o tesouro que tanto procurava, Nininho lembra de quando a avó certa vez lhe apareceu num sonho e lhe disse: “Você já achou esse tesouro. É o teu terreno. Tudo o que você botar nele são as moedas que você tanto sonha”. O que ele não sabia, naquele momento, era que a melhor coisa que poderia botar ali seria uma população inteira de papagaios-de-cara-roxa. “Se você parar pra contar, é muito papagaio. Digo muito de muito mesmo”, ele diz, e então aponta para o céu. “Olha lá, eles vão passar agorinha aqui.” No mesmo instante, um casal de papagaios-de-cara-roxa inaugura a revoada do dia rasgando a manhã da Ilha Rasa, rumo à certeza das florestas.
