Novo complexo eólico próximo a habitat da arara-azul-de-lear gera apreensão entre especialistas
Pesquisadores temem o perigo de colisão das aves com as turbinas; espécie sofre com risco de extinção e é vítima do tráfico de aves silvestres
- Oitenta turbinas eólicas serão construídas em Canudos, na Bahia, o principal refúgio da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie considerada em perigo de extinção.
- Pesquisadores temem o perigo de colisão das aves com as turbinas, sobretudo porque elas voam em horários de pouca visibilidade, no início e no fim do dia.
- Restam apenas 1.500 araras-azuis-de-lear na região; espécie sofre também com o tráfico de aves silvestres.
- A empresa responsável pela construção do parque eólico tomou medidas de redução de danos; pesquisadores, porém, alegam falta de estudos de impacto mais completos antes do início das obras.
A multinacional francesa Voltalia está iniciando a construção de um complexo eólico em Canudos, na região da Caatinga baiana, a 400 km de Salvador. O projeto prevê a instalação de 28 turbinas eólicas num primeiro momento e outras 53 numa segunda fase.
O empreendimento contará ainda com uma rede de transmissão de energia de 50 km, adentrando o município de Jeremoabo. Toda a eletricidade produzida será vendida para a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) num contrato já fechado pelos próximos 20 anos.
Acontece que essa mesma região abriga o principal refúgio no Brasil da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie considerada em perigo de extinção, de acordo com a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN).
A arara-azul-de-lear tem o hábito de realizar longos voos diariamente, cerca de 60 a 80 km. Sai do dormitório ao amanhecer, se alimenta em áreas vizinhas à sua morada, basicamente dos cocos da palmeira licuri, e no final da tarde, pode ser vista, aos bandos, chegando de diversas direções.
“Achamos arriscado o funcionamento de um parque eólico na área de ocorrência das leares. A espécie voa aos pares e em bando, de modo que um único evento de colisão poderá incidir na morte de muitos indivíduos e comprometer a viabilidade populacional em pouco tempo, ou seja, extinguir a espécie”, alerta Glaucia Drummond, superintendente da Fundação Biodiversitas.
Há 30 anos a Biodiversitas mantem uma área particular de 1.500 hectares na região, a Estação Biológica de Canudos, onde é realizado, em parceria com outras entidades nacionais e internacionais, um programa de conservação que inclui o monitoramento da arara-azul-de-lear, a proteção das áreas de alimentação e dormitórios, além de pesquisas sobre comportamento e projetos de educação ambiental.
Descrita pela primeira vez em 1856, o habitat da arara-azul-de-lear permaneceu desconhecido por mais de um século. Foi apenas em 1978 que pesquisadores descobriram sua localização, na região conhecida como Raso da Catarina, considerada por isso “sítio-chave” pela Aliança Global para a Extinção Zero e área prioritária de importância extremamente alta para conservação da biodiversidade da Caatinga pelo Ministério do Meio Ambiente.
O primeiro censo, realizado em 2001 pela Biodiversitas, em conjunto com o Cemave – centro nacional voltado para a conservação das aves silvestres ligado ao ICMBio, apontou a existência de 228 indivíduos. No último, de 2019, já eram quase 1.500, observados em seus cinco dormitórios: Serra Branca, Estação Biológica de Canudos, Fazenda Barreiras, Baixa do Chico (Terra Indígena Pankararé) e Barra do Tanque.
Por causa da melhora nos números da população, a arara-azul-de-lear passou da categoria “criticamente em perigo” da IUCN para “em perigo”, em 2011.
Legislação exige licenciamento ambiental completo
Segundo a Biodiversitas, um dos pontos que mais chama a atenção sobre o empreendimento é que a Voltalia não precisou apresentar um licenciamento ambiental completo para obter a permissão para a obra.
Uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabelece a exigência de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), além de audiências públicas, para plantas eólicas que estejam situadas em “em áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção e endemismo restrito”.
Apesar disso, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) aprovou o projeto somente com a apresentação do licenciamento simplificado. “Desejamos que a lei seja cumprida e todas as etapas obedecidas”, diz Glaucia, da Biodiversitas.
Em duas declarações enviadas por e-mail, a Voltalia afirmou primeiramente que “todos os seus projetos seguem rigidamente a Legislação Ambiental Brasileira e possuem todas as licenças necessárias para construção e operação”. E, numa segunda mensagem, “que realizou estudos para avaliação de impactos e de benefícios sociais, econômicos e ambientais, com propostas de ações de controle/mitigação da fauna e flora local, reafirmando que o projeto possui todas as licenças necessárias para a fase atual. A companhia também reforça seu compromisso com o meio ambiente e ressalta que as ações de preservação ambiental das araras não cessam durante a operação do empreendimento. É um trabalho contínuo e de longo prazo, que andará junto com a presença da Voltalia na região”.
Questionados sobre a razão pela qual o licenciamento ambiental completo não foi requisitado para a multinacional francesa, tanto o Inema como o Cemave não deram resposta até a publicação desta reportagem.
Risco de colisão das araras contra as turbinas
Um dos pré-requisitos estabelecidos pelo Inema para a concessão da licença prévia à Voltalia foi a criação de um programa de conservação para a arara-azul-de-lear, antes mesmo do começo da operação do complexo eólico. Para isso, a multinacional contratou uma das maiores especialistas no país sobre a espécie, a bióloga Erica Pacífico, que já realizou consultoria para outras empresas do setor de energia.
Erica acredita no comprometimento da Voltalia em mitigar ao máximo os impactos sobre as araras. Cita, por exemplo, que seguindo sua recomendação, foram alteradas as rotas de acesso ao parque eólico, que inicialmente passavam por áreas importantes de alimentação das aves. Também menciona que para evitar os riscos de eletrocussão, a rede de média tensão será enterrada.
“Não há evidências de que a rota de voo das araras passe pelo complexo”, diz Erica. Entretanto, reconhece que o trajeto das aves pode sofrer mudanças ao longo do ano e conforme a periodicidade das chuvas.
A bióloga explica que outras ferramentas de tecnologia serão utilizadas para minimizar ao máximo a ocorrência de impactos, entre elas o uso de aparelhos de GPs em algumas araras para estimar a área de vida da espécie.
A Voltalia informou ainda que estuda a possibilidade de pintar as pás de preto, já que algumas pesquisas sugerem que isso pode evitar as colisões. Também diz que implementará uma tecnologia que monitora a presença de aves, permitindo a interrupção da operação. Entretanto, questionada sobre quais são os horários de pico de produção de energia para checar se seriam os mesmos daqueles de maior circulação das aves, a companhia não deu resposta.
Erica Pacífico garante que não existem informações sobre a interação de araras com complexos eólicos. “Qualquer alegação a respeito nesse momento é infundada. A informação ecológica de base sobre a espécie não permite fazer inferências sobre os riscos de impactos, portanto, qualquer alegação é sem fundamentação científica”.
Falta de financiamento para a conservação da espécie
Apesar do empenho que a Voltalia afirma em ter com essa ave símbolo da Caatinga e tão ameaçada de extinção, a crítica que se faz ao empreendimento é que os estudos de impactos não deveriam ser feitos com o complexo já em operação.
“Estamos muito preocupados com o projeto numa área de alcance geográfico de uma espécie ameaçada. A perda de até mesmo uma única arara-azul-de-lear já seria demais. Parte da razão para isso é ela ser uma espécie de reprodução lenta, portanto, com menos capacidade de se recuperar”, ressalta Joel Merriman, diretor da campanha de Aves e Energia Eólica da American Bird Conservancy.
Para ele, as araras voarem justamente em horários de pouca visibilidade, no início e no final do dia, parece ser um risco ainda maior para colisões. O especialista explica também que estudos indicam que colisões não acontecem somente contra as pás da turbinas, mas contra as estruturas, que são gigantescas, com média de 100 metros de altura.
“Não há informações suficientes, elas ainda estão sendo coletadas. Mas a empresa não está esperando. É essencial que se tenha todos os dados. Turbinas eólicas não são feitas para todos os lugares. Elas simplesmente não são apropriadas para alguns locais. E a presença de vários parques [eólicos] acaba se tornando um desastre”, afirma Merriman.
O diretor da American Bird Conservancy cita um artigo científico publicado em 2017 que analisa o risco de colisão de pássaros e morcegos por características morfológicas e comportamentais. “Psittaciformes [papagaios e araras] têm um risco relativamente alto de colisões em geral e há boas razões para acreditar que isso se aplica às araras-azuis-de-lear”, diz.
A Voltalia já tem outro empreendimento eólico no Rio Grande do Norte e o projeto de uma pequena usina hidroelétrica no Amapá. Erica Pacífico sabe que, assim como a multinacional francesa, outras companhias irão explorar cada vez mais o potencial do vento brasileiro. Para ela, trabalhar ao lado da empresa é uma chance de conseguir recursos para financiar o programa de conservação da arara-azul-de-lear, já que o investimento governamental é mínimo.
“A espécie já enfrenta as ameaças do tráfico de aves silvestres, a expansão urbana e a falta de estratégia de proteção ao licuri, que sofre com o desmatamento e o pisoteio por sobrepastoreio. A gente não tem recursos para a preservação no Brasil”, lamenta.