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Guardiãs de sementes crioulas dão aula de resistência no Sul

Guardiãs de sementes crioulas dão aula de resistência no Sul
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Um patrimônio genético que atravessa gerações está guardado em pequenas propriedades rurais localizadas em diversos municípios do Rio Grande do Sul. As sementes crioulas – que, diferente das híbridas ou transgênicas, não passaram por manipulação genética por empresas privadas – sobrevivem graças ao trabalho dos agricultores familiares. Aqueles que se dedicam a preservar esse legado são chamados de guardiões – tarefa na qual as mulheres têm exercido um papel fundamental.

A agricultora Marineusa Trevisan Scota, 44 anos, já cultivava sementes crioulas, mas o interesse pelo tema aumentou há cinco anos, quando a filha Larissa passou a fazer parte de um projeto de guardiões mirins na escola em que estudava. No ano seguinte, ela ingressou na Associação dos Guardiões das Sementes Crioulas de Ibarama, na região Central do Rio Grande do Sul. Na propriedade de 32 hectares, Marineusa e o marido cultivam diversas variedades de milho, feijão, abóbora, melancia e melão, além de criar galinhas, suínos e gado. No caso do milho, são quatro tipos diferentes. As variedades são plantadas com um intervalo de 20 a 30 dias uma da outra, para que não haja um cruzamento indesejado entre elas.

O sabor, garante Marineusa, é diferenciado, e remete ao “tempo dos avós”, quando o mercado ainda não havia sido inundado pelos transgênicos. “Se fizeres uma polenta com a farinha do milho crioulo e pegar uma outra farinha de mercado, tu notas (a diferença) na consistência, na cor, no sabor. Tem aquele sabor do milho, e essas que se compra no mercado não têm, é uma coisa meio sem gosto”, resume.

Ser guardiã é como ser mãe daquela semente. Você planta, cuida, depois colhe, seca ela, guarda dentro de uma garrafa PET, aí tem que olhar se não tem caruncho. É igual a uma criança

As tarefas na propriedade são divididas entre os membros da família. Ao marido, cabem as atividades mais pesadas, como o preparo da terra. Os filhos mais velhos ajudam a debulhar e fazer a classificação das sementes. Mas é Marineusa quem se encarrega de tomar as decisões e planejar o cultivo a cada ano. Ao que tudo indica, a trajetória da família terá continuidade – Larissa, hoje com 15 anos, pretende cursar a faculdade de agronomia e dar continuidade ao legado da mãe.

“É como ser mãe”, diz guardiã

A semente crioula é um elemento presente em muitas comunidades tradicionais do país. Moradora do Quilombo dos Negros, em Rio Pardo, Joelita de David Bittencourt, 50 anos, cultiva milho, feijão, batata-doce, amendoim, melão e melancia em uma área de um hectare. Ela chegou a ter dez variedades de milho, mas muitas sementes foram perdidas em razão da estiagem que atingiu o Rio Grande do Sul na safra passada. Para o próximo ciclo, três tipos diferentes foram semeados.

Marineusa Trevisan cultiva quatro tipos de diferentes de milho. Foto WhatsApp
Marineusa Trevisan cultiva quatro tipos de diferentes de milho. Foto WhatsApp

“Ser guardiã é como ser mãe daquela semente”, descreve Joelita. “Você planta, cuida, depois colhe, seca ela, guarda dentro de uma garrafa PET, aí tem que olhar se não tem caruncho. É igual a uma criança”, compara a produtora, mãe de Fabiano, que a ajuda com a lavoura. Na avaliação dela, a grande vantagem da semente crioula é o fato de que ela não requer o mesmo período de adaptação à terra de uma variedade híbrida. Crítica do uso de venenos na produção agrícola, ela afirma que até mesmo a carne de um animal alimentado com milho crioulo possui um sabor diferenciado.

Parte da produção é comercializada pela própria Joelita na feira em que participa aos sábados, no centro de Rio Pardo. A ideia para o futuro é aproveitar o milho para fazer farinha. O interesse pelas sementes crioulas se acentuou há quatro anos, mas desde criança a guardiã conhece o sistema de produção agroecológico, influenciada pelo pai, falecido em 2008. Outras 63 famílias vivem no Rincão dos Negros, totalizando cerca de 150 pessoas – que ainda aguardam a titulação do quilombo, situado em uma área de 571 hectares.

Cecília Strottmann se orgulha de não usar veneno na produção. Foto WhatsApp
Cecília Strottmann se orgulha de não usar veneno na produção. Foto WhatsApp

Cecília Strottmann, 79 anos, atribui a longevidade aos hábitos saudáveis na alimentação. Viúva, ela mesma cultiva a área de sete hectares onde nasceu e foi criada, no interior de Novo Hamburgo, a 40km de Porto Alegre – e sem o uso de veneno, como faz questão de dizer. O cultivo de sementes crioulas foi um hábito herdado da mãe, que guardava o material em um armário. “Havia uma prateleira só de sementes”, recorda.

A agricultora começou guardando sementes de moranga e abóbora após consumir o alimento, e hoje produz diversas espécies, principalmente milho e feijão. “Sou muito das coisas naturais”, resume Cecília, que participa com frequência dos encontros de guardiões promovidos pela Emater. As sementes são comercializadas com outros produtores em pequenos pacotes.

Cultivo ocorre em sistemas agroecológicos

“A semente crioula é fundamental para todo o processo de sustentabilidade dos sistemas produtivos”, resume o biólogo e extensionista rural Carlos Roberto de Ávila Rocha, da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS). Além de cultivar as sementes crioulas, o guardião se encarrega da seleção. De acordo com Rocha, o melhoramento genético ocorre a partir de uma espécie de hibridização natural, uma vez que os responsáveis, que escolhem as melhores variedades, recolhem as sementes e se dedicam a multiplicar o material.

O fato de a semente crioula não ter sido manipulada por empresas privadas não impede que a planta seja tão ou mais resistente a intempéries climáticas do que o híbrido ou transgênico, segundo Rocha. Inclusive, como explica o extensionista, o material é menos dependente dos adubos químicos, respondendo melhor a uma manutenção de produção mais baixa. A produção ocorre em sistemas de cultivo agroecológicos, com adubação orgânica e sem utilização de veneno.

Para que esse patrimônio seja preservado e multiplicado, alguns cuidados são fundamentais. Rocha explica que é necessária uma proteção para que essas espécies não sejam “contaminadas” por variedades híbridas ou transgênicas. Por isso, a área de cultivo deve estar localizada a pelo menos 500 metros de outras lavouras. Quando não houver barreiras de proteção, como o mato, a distância exigida pode ser maior.

Joelita Bittencourt cultiva milho, feijão, batata-doce, amendoim, melão e melancia em uma área de um hectare. Foto WhatsApp
Joelita Bittencourt cultiva milho, feijão, batata-doce, amendoim, melão e melancia em uma área de um hectare. Foto WhatsApp

Figura do guardião é “essencial”

O protagonismo das agricultoras na produção das sementes crioulas não chega a ser uma novidade. “A agricultura nasceu com as mulheres. Elas foram muito responsáveis pelo manuseio das sementes nos primórdios do ser humano, e isso veio se desenvolvendo”, afirma o pesquisador Gilberto Peripolli Bevilaqua, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), unidade Clima Temperado, de Pelotas.

A Embrapa possui catalogadas cerca de 800 variedades de feijão e 300 de milho, além de variedades de outras culturas. De modo a garantir a conservação, o material fica armazenado em câmaras frias. No entanto, há alguns anos, os pesquisadores identificaram que isso não seria suficiente, em meio ao contexto global de mudanças climáticas, para manter a conservação destas espécies.

“Não basta a variedade estar dentro da geladeira, ela tem que estar interagindo com o ambiente. Então a figura do guardião se torna essencial”, afirma Bevilaqua. O pesquisador lamenta, contudo, que o número de guardiões tenha se reduzido, em função de muitos jovens optarem por não permanecer no campo.

Impactados pelo preço da soja, principal grão produzido no Rio Grande do Sul – e que vive momento de valorização –, outros cultivos acabam por perder espaço na lavoura. A Embrapa, por sua vez, se encarrega de avaliar, identificar e desenvolver novas variedades de produtos que são importantes para a agricultura familiar, como feijão, milho, mandioca e batata-doce, em alguns casos utilizando as variedades crioulas destas espécies. “Somos alimentados por um número muito pequeno de espécies e isso é extremamente perigoso do ponto de vista da segurança alimentar”, observa Bevilaqua.

A pandemia de Covid-19 prejudicou a troca de experiências e de sementes entre os guardiões, já que muitos eventos presenciais foram suspensos. A Expointer, principal feira agropecuária do Rio Grande do Sul, onde ocorriam eventos voltados à biodiversidade, foi realizada apenas em formato virtual no ano passado. Feiras de venda de produtos da agricultura familiar também foram interrompidas no interior do Estado. “Os agricultores, na verdade, não pararam, mas (a pandemia) dificultou bastante o processo de comercialização”, reconhece Rocha, da Emater.

Fonte: Projeto Colabora

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Trajano Xavier

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