A “ressurreição” de uma nova espécie de preguiça-de-coleira na Mata Atlântica
O processo pelo qual a ciência define uma espécie tem muitos caminhos e nem sempre eles são lineares. Esta é a história de como a ciência trouxe “de volta” uma espécie, mais precisamente, a preguiça-de-coleira-do-sudeste. A partir de novas análises moleculares e morfológicas, os pesquisadores confirmaram que a preguiça-de-coleira, que até então era reconhecida como uma única espécie, na verdade são duas espécies distintas.
Esta história, entretanto, não começa com o artigo recém-publicado ou mesmo com o início das pesquisas há quatro anos, mas em 1850, quando o zoologista britânico John Edward Gray primeiro descreveu uma espécie de preguiça, a qual batizou com o nome científico de Bradypus crinitus. Crinitus, em latim, fazia referência ao aspecto de crina que o animal teria ao redor da cabeça.
Onde Gray viu uma “crina”, outros haviam visto uma coleira. Quase quarenta anos antes, em 1811, outro zoologista, o alemão Johann Karl Wilhelm Illiger, descreveu a espécie Bradypus torquatus, que ficou conhecida popularmente como preguiça-de-coleira.
Apesar das duas descrições distintas, as similaridades entre as preguiças, restritas à Mata Atlântica brasileira, fizeram com que ciência reconhecesse a existência de apenas uma espécie. Prevaleceu o primeiro nome científico dado ao animal – Bradypus torquatus – cuja distribuição geográfica se estendia então do estado do Rio de Janeiro até Sergipe, no litoral brasileiro. Com isso, a B. crinitus caiu no esquecimento e o registro perdeu-se em documentos antigos.
“Já haviam análises moleculares e morfológicas que indicavam que eram duas espécies de preguiça-de-coleira, até porque muitas dessas descrições são antigas. A ciência é o resultado das ferramentas que a gente tem no momento e hoje a gente tem a genética e isso dá um subsídio muito grande para taxonomia”, explica a veterinária Flávia Miranda, que liderou a pesquisa e o artigo publicado na última segunda-feira (19), no periódico Journal of Mammalogy, junto com outros cinco pesquisadores. Além de diferenças no DNA, foram constatadas diferenças físicas nas estruturas ósseas das preguiças, que confirmam que não se trata de uma única espécie.
Com a revisão taxonômica, as preguiças-de-coleira ficam divididas em duas espécies, a do sudeste (Bradypus crinitus) e a do nordeste (Bradypus torquatus). Uma grande diferença entre as duas, como o próprio nome sugere, é a distribuição. Ambas são endêmicas da Mata Atlântica, ou seja, existem apenas no bioma, mas a preguiça-de-coleira-do-sudeste ocorre nos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Já a do nordeste, nos estados da Bahia e do Sergipe.
Pesquisas estimam que as duas espécies se separaram há aproximadamente 5 milhões de anos. As barreiras geográficas para esta divisão entre as espécies seriam os rios Doce e Mucuri, mas esta ainda é apenas uma hipótese evolutiva. “Nós só começamos a questão taxonômica, existem muitas outras perguntas para serem respondidas”, afirma Flávia, que é professora da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, e presidente fundadora do Instituto Tamanduá.
Pesquisa histórica
A equipe de pesquisadores se debruçou sobre uma pesquisa inicialmente histórica, lendo relatos de expedições de naturalistas pela Mata Atlântica brasileira e fazendo uma revisão das descrições feitas nos séculos passados e dos materiais coletados de preguiças.
Um dos que mergulhou nessa taxonomia histórica foi Guilherme Garbino, professor do Departamento de Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e um dos autores que também assina o artigo. “Foi um trabalho de detetive mesmo”, destaca.
“Originalmente, quando a Flávia veio com a hipótese de que seriam duas preguiças-de-coleira, nós achamos que seria uma espécie nova, com nome novo. Mas aí eu fui fazendo esse levantamento, vendo os nomes que haviam sido dados antes para o gênero Bradypus e indo atrás das informações”, lembra o pesquisador.
Foi assim que ele chegou no exemplar armazenado no Museu de História Natural de Londres, na Inglaterra, coletado por Gray. “Ele batia com o bicho que a gente achava que era uma espécie nova e na verdade já tinha recebido um nome há 150 anos”, conta. Os pesquisadores receberam diversas fotos do crânio, com ajuda de um pesquisador brasileiro que trabalha no museu, e fizeram a análise remotamente.
“É possível ‘reolhar’ uma coisa que com certeza muitas pessoas já olharam, está no museu há mais de cem anos, e descobrir algo novo. Isso é um valor muito importante dos museus e coleções, e que infelizmente não valorizamos no Brasil. O museu não é um depósito que fica parado, ele precisa de cuidado e dar acesso à sociedade e ao pesquisador”, reflete Guilherme.
Dos crânios à geografia
Na pesquisa, eles trabalharam com marcadores filogenéticos e características morfológicas, como a estrutura óssea dos animais. Foram analisados 55 exemplares de preguiças. Além da divergência do DNA, os pesquisadores analisaram diferenças no tamanho e caracteres distintos nos crânios, em escápulas, úmeros e mandíbulas.
“Nós começamos indo para as coleções, vendo o que havia nos museus, os crânios. Tivemos que ir atrás desses crânios coletados em 1800 e pouco. E neles dá para ver que existem diferenças morfológicas. Por exemplo, uma mudança no ângulo da mandíbula, que sugere uma diferença inclusive de dieta desses animais”, explica Flávia.
Ela pontua que essas observações morfológicas fazem parte de um conjunto maior, onde tudo precisa encaixar. Essa abordagem é chamada de taxonomia integrativa, ou seja, juntar as várias peças – morfologia, genética, distribuição – numa análise integrada. “Por exemplo, na mandíbula tem uma pontinha que todos os animais da Bahia têm, mas que os do Rio de Janeiro e do Espírito Santo não têm”, diz a veterinária.
Para Flávia, a diferença é visível até mesmo na coloração da pelagem, mas esta é apenas uma percepção sua, esclarece, ainda não confirmada cientificamente. A hipótese aponta que a população do sudeste seria mais acinzentada, enquanto a do nordeste seria mais ruiva.
Criticamente ameaçadas
Atualmente, a classificação nacional da preguiça-de-coleira, como espécie única, é Vulnerável. Na Lista Vermelha do estado do Rio de Janeiro, entretanto, a espécie já é considerada Criticamente Em Perigo de extinção. Com a divisão em duas espécies, ambas as preguiças-de-coleira devem ser consideradas sob maior ameaça de desaparecer, como sugerem os pesquisadores no artigo.
“É uma espécie endêmica e com distribuição restrita e provavelmente as duas vão para Criticamente Em Perigo. Ela está como Vulnerável por causa da perda de habitat, com uma área de ocupação de menos de 1 mil km² e bem fragmentada. A área de ocorrência melhor preservada é o sul da Bahia, mas se a gente olhar pro Espírito Santo e pro Rio de Janeiro, onde está a B. crinitus, a situação é bem crítica”, alerta Flávia, que faz parte do grupo de especialistas da IUCN (União Internacional pela Conservação da Natureza) sobre tamanduás, tatus e preguiças.
As consequências dessa redelimitação das preguiças-de-coleira para conservação serão discutidas em parceria com a IUCN, que faz as listas vermelhas à nível mundial, e com o ICMBio, órgão federal que faz a gestão da fauna brasileira. Além disso, o assunto entrará nas discussões do Plano de Ação Nacional (PAN) dos Primatas da Mata Atlântica e da Preguiça de Coleira, para definir como será a estratégia para as duas espécies.
Um dos aspectos fundamentais nessa discussão será o manejo ex situ, ou seja, aquele feito em cativeiro, fora do habitat natural da espécie. Atualmente, não existe nenhuma preguiça-de-coleira em cativeiro. “É difícil fazer esse manejo porque sabe-se pouco da alimentação delas, a dieta é muito restrita, mas com certeza esse vai ser um primeiro passo: montar um programa de conservação ex situ para as espécies”, ressalta Flávia.
Foram quatro anos de pesquisa até a publicação do artigo. De acordo com a veterinária, o próximo passo – já em curso – é fazer o genoma, que permite a análise mais completa disponível. Para fazer o genoma das preguiças-de-coleira, foi firmada uma parceria com o instituto alemão Leibniz Institute for Zoo and Wildlife Research.
“A América Latina ainda tem uma fauna inexplorada, estamos em pleno processo de descrição de espécies e estamos descobrindo novas espécies em pleno século 21. Precisamos fomentar a taxonomia e estes profissionais porque são anos em frente a um crânio para desvendar a nossa biodiversidade e o que temos nesse país. São pesquisadores brasileiros fazendo ciência de alta qualidade com poucos recursos. Nós não temos nenhum recurso do governo, tivemos que ir atrás de recurso. Estamos fazendo ciência na raça e isso precisa ser muito valorizado”, desabafa a presidente fundadora do Instituto Tamanduá.
Com a revisão, o Brasil agora passa a ser o lar de seis espécies de preguiças, além das duas de coleira, completam a lista a preguiça-comum (Bradypus variegatus), a preguiça-bentinho (Bradypus tridactylus), a preguiça-de-hoffmann (Choloepus hoffmanni) e a preguiça-real (Choloepus didactylus).
Por O Eco