70 anos depois, o cerrado mineiro que inspirou Guimarães Rosa já não é um “oásis”
Nos 240 km entre Três Marias e Araçaí (MG), madeira, carvão e estiagem fazem mais sentido no ditado do que o antigo amarelo do bioma que inspirou Grande Sertão: veredas
Eles abrem os cadernos. A aula surge no ditado, na lousa e até pela janela da escola. Há palavras difíceis nessa travessia: cerrado queimado, destruição, meio ambiente, comida, deserto… O ensino vem das sílabas pausadas da professora, mas também do silêncio contínuo que cerca o lugar. Na comunidade das Pedras, em Três Marias (MG), a escola municipal Olavo Bilac funciona como fronteira de resistência de um lugar sem asfalto, bordado pela poeira do tempo, que já teve 40 famílias. Agora, só vivem pessoas em seis casas. A escola do lugar tem apenas quatro alunos, de diferentes idades, do segundo ao quinto ano do ensino fundamental.
Poeira por todos os lugares que cobre os cadernos dos alunos, que são quase como as cadernetas de João Guimarães Rosa (1908-1967). Em 1952, o autor mineiro nascido em Cordisburgo se pôs — em dez dias de uma jornada com 17 vaqueiros — a registrar e decifrar naquela mesma região tudo o que via.
Na aula observada pela reportagem da Agência Pública, as crianças buscam entender o mundo e o clima mais difícil que recebem como herança. Hoje, o sertão está mais árido do que há 70 anos, quando o escritor se inspirou para escrever sobre o que o exasperava ao percorrer 240 quilômetros, descrevendo as veredas, o espaço de vegetação cercado de água no baixio do cerrado, como um oásis, “anunciada” por pelo menos um buriti.
Mas o cerrado agora é cercado pelo eucalipto, como o escritor, àquela época, já denunciava. Setenta anos depois, madeira e carvão fazem mais sentido no ditado do que o antigo amarelo do cerrado. Como escreveu Rosa: “sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra”.
Em diferentes lições, as crianças e as duas funcionárias da escola já entenderam que a seca, a instabilidade climática, o cerrado alterado, além da distância para a área urbana, afastaram as pessoas do trabalho rural.
Nas aulas de português da professora Denise Coelho, de 54 anos, já aprenderam sobre o escritor conterrâneo. O célebre autor saiu justamente lá da vizinhança, da fazenda Sirga, para um trajeto que ele depois batizou “A boiada I e II”. Naquele trajeto, coletou, em suas cadernetas, anotações sobre tudo o que via: plantas, cenários, cheiros, cores, pessoas, em uma espécie de inventário afetivo da região. Os livros Grande sertão: veredas e Corpo de baile estão entre os resultados daquele olhar.
As anotações registradas e datilografadas são guardadas como relíquia no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP). Há trechos como “O vento tinha derrubado os mamões, alguns quase maduros. Amarelo pálido: flor de quiabeiro. Limão dá flor quase todo o tempo. Em geral, tem sempre flor e limão, verdes e maduros”.
A bióloga Mônica Meyer (que pesquisa a natureza na obra de Guimarães Rosa há mais de 30 anos) identifica que o olhar ambientalista do escritor torna-se atual e inquietante mesmo depois de tanto tempo. O sertão “rosiano”, inclusive por todas as cidades que ele viajou na boiada de 1952, é em 2022 marcado por dificuldades comuns. “Não só pelas mudanças climáticas que estão em curso, mas também pelas políticas hegemônicas que predominam na área de alimentação. A política não é para alimentar a população brasileira. O cerrado foi devastado.”
Em 1952, as anotações de Guimarães Rosa já registram essa devastação e o começo da presença do eucalipto. “O cerrado foi devastado com as monoculturas de soja e milho. Tem também a devastação com a produção do carvão vegetal que foi alimentar as siderúrgicas e a ocupação das áreas cada vez maiores com o eucalipto. E isso é claro que causa um impacto enorme na sustentabilidade e biodiversidade da região”, diz a bióloga.
As crianças, na aula de geografia da escola da comunidade das Pedras, para movimentar o espaço da sala de aula, costumam visitar a pé o que as cerca. O córrego, que estava seco. O algodoeiro do vizinho, que ficou raro. O mamoeiro, nos fundos da escola. O cenário de eucalipto no horizonte, que tomou conta do cerrado. Da janela, avistam ainda a plantação seca e um pivô de irrigação — muito utilizado pelo agronegócio no cerrado. Há cinco anos, a chuva ia até abril. Agora, encerra em fevereiro, quando não cessa antes, como os produtores da região testemunham. “Em geral, as crianças não conhecem as frutas típicas do cerrado”, lamenta a professora.
“Esse assunto, meio ambiente, tem a ver com tudo. Com o que a gente come ou mesmo por que essa comunidade existe. Quando eu era criança, aqui antes era melhor. Não era seco como hoje. Foi assim que veio o êxodo rural”, diz a professora. A outra funcionária da escola, a auxiliar de serviços gerais, Rosimeire Alves, de 53 anos, gosta muito do trabalho na escola e tem paixão pela roça que cultiva nos fundos de casa, vizinha à unidade de ensino.
O sonho era viver do que plantava, mas o clima não ajuda. “Quando a gente era mais jovem, tomava suco das frutas do cerrado. Hoje essas crianças não sabem o que é isso. Querem bala e refrigerante porque não tem mais o costume de comida natural.”
Segundo a bióloga Mônica Meyer, a destruição do cerrado na região gera um prejuízo humano muito relevante na rotina das comunidades do sertão rosiano. “Há um impacto nítido na alimentação da população e também nas mudanças climáticas. São regiões hoje que estão muito mais secas. O solo com mais perdas de nutrientes, claro”, diz a professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em uma visão diferenciada, contextualiza a pesquisadora, Guimarães Rosa trazia em suas obras uma visão defensora do meio ambiente, de que tudo estava interligado, pessoas e natureza.
O engenheiro florestal Vicente Resende, na mesma linha, considera que, ao mesmo tempo que se degrada o meio ambiente, há uma degradação social. “Não existem duas coisas. Uma prova disso é o êxodo rural. Os mais jovens passam a não ver o futuro por ali. Pergunta para essas crianças se elas sabem o que é uma fruta do cerrado, uma região que tem mais de 40 frutas.” Por outro lado, o secretário municipal de Meio Ambiente de Três Marias (MG), Roberto Carlos Rodrigues, diz que as crianças não dependem mais das frutas da região para se alimentar, já que há outras ofertas de alimentos, e monitoradas por nutricionistas.
A situação atual da natureza na região difere dos registros de Rosa, de 70 anos atrás, que apontavam que nas redondezas via “na árvore: jatobá, jenipapeiro, imbaúbas, ingazeiro, canela e pau d’arco”. Ou quando afirmou, depois do início da viagem, que as culturas estavam atrasadas, ou chamou atenção para o algodoal empoeirado, com os “capulhos já brancos e ainda não abertos”. Na comunidade das Pedras, a professora testemunha que via mais algodoeiros no passado.
No Velho Chico
No rumo dessa boiada, está o rio São Francisco (presença constante nas anotações e nas obras de Rosa), que banha a cidade de Três Marias, de 33 mil habitantes. A bióloga Mônica Meyer salienta que a erosão das áreas próximas aos rios prejudica as margens e, por consequência, causa efeito no leito e nas águas. Setenta anos depois, os pescadores da região passam por dificuldades.
Segundo o presidente da Federação de Pescadores de Minas Gerais, Valtinho Quintino Rocha, de 55 anos, a redução de chuvas entre 2019 e 2021, combinada com a pandemia e falta de clientes, diminuiu em 50% o rendimento dos trabalhadores da região. Há cerca de 400 pescadores cadastrados para a atividade na região. O dourado e o surubim são os peixes que os trabalhadores mais buscam, porque são preferidos do público.
“A situação melhorou com as chuvas do começo do ano. Não temos condições de fazer uma pesquisa sobre o impacto ambiental”. Outro temor dos pescadores tem relação com a proximidade da multinacional Nexa (formada pela brasileira Votorantim), indústria siderúrgica que produz zinco e está instalada às margens do Velho Chico.
Em maio deste ano, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Nexa assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para análise de estudos ambientais sobre os impactos dos rejeitos. A Nexa se comprometeu a custear a contratação de equipe técnica especializada para fazer a pesquisa, analisar e elaborar relatório técnico específico sobre impacto da exploração do minério na região.
Em nota, a empresa informou à reportagem que se comprometeu a destinar R$ 7 milhões para projetos voltados para compensação ambiental e para um projeto de educação para moradores do distrito de Beira Rio, São Gonçalo do Abaeté e Três Marias nas atividades do turismo de pesca. A ideia é compensar e reparar impactos em dois pontos de captação de águas subterrâneas. “A Nexa mantém o monitoramento dos atuais pontos de captação de água subterrânea sob influência de sua área de atuação, com encaminhamento dos dados ao órgão ambiental competente durante todo o período de remoção dos rejeitos de duas barragens fora de operação há mais de 15 anos para o Depósito de Rejeitos Murici.”
Aos 73 anos, o pescador Norberto dos Santos (na atividade desde 1961), da Colônia Z4, acrescenta que a exploração das águas pelo agronegócio da região tem sido problemática para os trabalhadores. “Eles colocam as bombas e sugam a água. Como vamos mexer com empresários?” Outra queixa é em relação à pesca subaquática, em que turistas predam os peixes maiores (que são consideradas as matrizes reprodutivas) no rio São Francisco, comprometendo o equilíbrio da fauna. Além disso, a hidrelétrica de Três Marias, segundo ele, gera impacto no trabalho do pescador.
A respeito disso, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) admitiu à Pública que, de fato, o processo de geração de energia elétrica causa impactos ambientais nos cursos d’água e nos peixes. Por isso, garante que desenvolve projetos que “possam subsidiar melhores práticas de monitoramento, manejo e conservação”, como o Programa Peixe Vivo. “Na região da UHE [Usina Hidrelétrica] Três Marias, a Cemig desenvolve projetos de pesquisa, tanto a montante quanto a jusante, visando aumentar o conhecimento sobre a biodiversidade nesses ambientes para subsidiar a sua preservação.”
Nas margens do rio, a gari Ivone de Jesus, de 42 anos, admirava a beleza do lugar enquanto reclamava da fumaça que saía da chaminé da Nexa. Moradora da cidade, ela trabalha das 5h às 12h na limpeza. À tarde, volta para a comunidade em que mora para tentar plantar arroz. “Eu acordo às 4h20. Mas tenho asma. Essa rotina ficou puxada.”
Para a ambientalista Bárbara Johnsen, radicada na região e que foi secretária do Meio Ambiente por 12 anos, a pesca tem sido um dos setores mais impactados pelas mudanças climáticas. “Quando Guimarães Rosa passou por aqui, eles escolhiam o peixe que seria pescado. Quando ele fez esse percurso com a boiada, ele relatou que tinha que ladear as veredas porque eram charcos. Hoje em dia, as empresas passam com um trator em cima”, diz a ambientalista. Para ela, desde sempre, o impacto do meio ambiente atinge as pessoas mais vulneráveis.
O engenheiro florestal Vicente Resende, que vive há 37 anos na cidade de Três Marias, entende que o sertão rosiano é muito vulnerável. “As veredas formam um ecossistema sensível. Imagine que você está em um local de topografia mais alta e, de repente, se encontra um buritizeiro, solo turfoso e água. Aí se coloca areia, para plantar seja o que for, como o eucalipto, sobre o solo orgânico, acaba a vereda. Impacto em vereda é normalmente irreversível. A gente tem exemplos aqui de veredas que acabaram.”
Saudades é um ser
No caminho da boiada, o distrito de Andrequicé, em Três Marias, a 30 quilômetros da sede da cidade, respira a memória de um dos vaqueiros, Manuel Nardi, que inspirou Guimarães Rosa para o livro Manuelzão e Miguilim (1964), que traz um dos contos célebres do autor: Uma história de amor. Outras histórias de amor reais são escritas no lugar. Amor pelo lugar, inclusive, e pelo passado.
O trabalhador rural José Raimundo Pereira Filho, de 48 anos, teve que trocar a própria terra (onde “plantava de tudo”) por um emprego em uma fazenda arrendada para indústria siderúrgica, na área rural de Três Marias. Por três anos, por falta de transporte, ele só conseguia voltar para casa a cada 15 dias. “Era arroz, milho, feijão, fruta, mas acabou tudo por causa desse clima.”
No emprego, ele é responsável por transportar a pipa d’água e resfriar o carvão que sai dos fornos onde se queimam as toras de eucalipto. “Antes, era muita fruta, ave, córrego, água… hoje só vê esse seco.” José Raimundo diz que perdeu o gosto de andar pelo lugar em que ele mora. Nem experimenta mais a sua frutinha predileta, o murici-de-ema. “Era quando tinha cerrado. Agora só tem eucalipto.”
Com ele, trabalha a filha Daniela Pereira, de 23 anos, que está registrada como “ajudante de reflorestamento”, mas que na verdade atua na limpeza do lugar. Sobre o que era o passado do local em que mora, só ouviu falar e sente em si as saudades do passado que os pais transmitem a ela. “Deve ter sido bom. Mas meu sonho é ir estudar fora. Ser esteticista.”
Para a esposa de José Raimundo, Beatriz Pereira, de 44 anos, os cheiros ficaram no passado. “Lembro da mangaba, da cagaita, do araticum. Eram frutas nossas. Agora ficou raro. Meus filhos já não sabem nem o que é isso.”
No terreno nos fundos da casa, ela mantém uma horta com couve, alface, mostarda, rúcula, hortelã, pimenta, morango, jatobá, araçá e marcelica, além de algumas outras plantas mais resistentes ao clima seco. Não é possível produzir para vender e ajudar nos rendimentos da casa. A água nem é o suficiente. Para comprar arroz, feijão e banana, por exemplo, tem que usar o dinheiro do salário. Antes, vinha dos fundos da casa. O que o casal recorda também é o barulho dos pássaros. “Agora é tudo mais silencioso”, diz José Raimundo. “Só dá para escutar o vento”, lamenta Beatriz. Um barulho que carrega uma falta, como escreveu o conterrâneo Guimarães Rosa, em que a saudade é um “ser depois de ter”.
Saudade não falta na casa de Raimundo Antonio de Moura, de 80 anos, e Joaquina Pereira, de 78, também em Andrequicé. Aquecidas pelo forno a lenha, as lembranças de quando o milho, o arroz e a cana eram colhidos acompanham um aceite: “Era bem melhor”. “Por aqui, passavam três regos de água.” Cana e capim estão secos. O arroz, o casal também deixou de plantar e teve que gastar a aposentadoria no mercadinho. “Agora não tem fruta nenhuma. As chuvas vêm piorando nos últimos 15 anos.” Justamente quando Raimundo se aposentou do trabalho em carvoarias da região.
“O mundo está diferente. Não sei explicar. Antes, a jabuticaba rendia bastante entre setembro e novembro. A gente passava para os vizinhos. Hoje, mal dá para os bichos”, lamenta a esposa, Joaquina.
A aposentada tem razão, segundo o professor de biologia Geraldo Wilson Fernandes, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG. O cerrado, de fato, tem se tornado mais seco. “Esse não é um fenômeno apenas no sertão de Rosa. Há indicações que a quantidade de chuvas é a mesma, só que ela cai mais rápida, restrita a um período menor.” Por isso, conforme explica o pesquisador, há mais tempo seco em toda a região, e isso se observa em vários pontos do cerrado brasileiro. “São indicações muito claras que estamos sofrendo com as mudanças climáticas.”
Como resultado, explica o professor, isso gera vários problemas. “As plantas têm menos tempo para crescer, influencia a produção de água e alimentos, e isso causa inúmeros problemas econômicos. Nós temos alertado as autoridades. O problema é que as pessoas não entendem ainda a gravidade”, avalia Fernandes.
Mas na vida da produtora rural Wislene Soares, de 39 anos, a gravidade tem a forma da redução do quanto as 13 vacas rendiam de leite para o comércio da família. Ela viu nos últimos cinco anos diminuir em 70% a quantidade de leite para fazer o requeijão e as tranças de queijo que o marido vende pela cidade. “A cana que os animais comem fica a maior parte do tempo seca. O capim também.” Teve que comprar capim mais resistente à mudança do clima.
Ainda em Andrequicé, em trabalho do início da manhã até o final da tarde, a agricultora baiana Natalice Aguiar, de 30 anos, vive com a enxada para tentar deixar a roça verdinha. Ela lembra que, há 13 anos, deixou a cidade de Rio de Contas (BA) na esperança de que o cerrado pudesse sustentar a família e ainda ter a própria venda. “Chovia mais. Hoje não é a mesma qualidade das hortaliças do que já foi. A secura ou a chuva demais atrapalham.”
É a alface que eles produzem que chega na casa das pessoas do lugar. O marido, Antônio Bertier, vende os produtos com uma moto ou de charrete pelo distrito. Na terra, também buscam segurar pés de sucupira, pequi e outras frutas regionais. Quando se aproximava da fazenda Tolda, nessa Andrequicé, Guimarães Rosa anotou: “Sucupira branca, jatobá miudinho, jacarandá, faveira […] Chegamos à vereda da Tolda. O cheiro bovino se acentuando mais e ficando doce como o mel de tacha”.
Sente o cheiro de mel cada vez mais longe o apicultor Rogério Gouveia, de 41 anos. Ele usa as plantações de eucalipto para colocar as caixas de abelhas. Mas, em 2022, o rendimento foi de desanimar. A cooperativa com que trabalha na cidade, com dez apicultores, conseguiu, de acordo com ele, uma quantidade “ínfima” de mel. “De janeiro a junho, não consegui nada.” Em períodos anteriores, chegaram a 40 toneladas no ano. Ele atribui a mudança ao clima mais quente, à perda do cerrado por desmatamento e fogueiras clandestinas por produtores de gado e aos defensivos aplicados nas florestas de eucalipto da siderúrgica Gerdau. “No ano de 2004, com 780 enxames de abelha, eu tirei 204 tambores em alguns meses. Agora vivemos sete ou oito meses de seca.”
Sobre a exploração em Três Marias, a Gerdau explicou à reportagem que atua em uma área de 39 mil hectares. “No município, a companhia opera com uma Planta de Carbonização para produção do carvão vegetal a partir da madeira cultivada.” A respeito da atividade de apicultura, “como forma de fomento ao desenvolvimento socioeconômico da região”, a Gerdau disse que procura incentivar o empreendedorismo de pequenos apicultores em Três Marias e região com o programa “Néctar do Futuro”.
“A iniciativa reúne dezenas de produtores por meio de associações que utilizam as plantações de eucalipto da empresa como pasto apícola para produção local de produtos gerados pelas abelhas.” A empresa não respondeu sobre a utilização de defensivos agrícolas e explicou que colaboraram com a produção de mais de 40 toneladas de mel silvestre por ano.
Para o secretário de Meio Ambiente, Roberto Rodrigues, os relatos de seca na área rural não são tão graves quanto parecem. “É uma percepção mais do ponto de vista sentimental [dos moradores do lugar]. Chove a mesma quantidade do que antes”, alega o gestor. Mas não é tão simples assim. O impacto da secura vai muito além do “sentimento” ou da nostalgia. Segundo Dossiê da Climatologia de Minas Gerais, publicado na Revista Brasileira de Climatologia, as mudanças no regime de chuvas são inquestionáveis.
O levantamento diz, como projeção para o futuro, que haverá ainda mais “redução do número de dias úmidos entre o outono e a primavera e aumento do número de dias consecutivos secos em todas as estações do ano”.
O professor de biologia Geraldo Wilson Fernandes, da UFMG, enfatiza que é necessário contextualizar que a rapidez com que cai torna episódica a chuva, o que não rende benefícios reais para as pessoas e plantações. Aliás, o que ocorre é o contrário. Conforme o pesquisador explica, os temporais ocasionais prejudicam a lavoura e a capacidade de as pessoas viverem da terra.
Rolo compressor
Nesse caminho de devastação do cerrado, o professor Geraldo Fernandes entende que os produtores passaram um “rolo compressor” ao plantar historicamente o eucalipto de forma inadvertida. “Varreram as nascentes do sertão. As terras férteis poderiam ter sido protegidas.” Para ele, poderia ter sido adotada outra planta nacional que produzisse madeira e trouxesse outros benefícios.
“Nós temos um deserto verde com uma biodiversidade muito baixa comparada a qualquer mato natural.” A situação oprime o sertanejo socialmente, conforme avalia. “O eucalipto gera vários problemas associados e pode estar influenciando as mudanças climáticas na região.”
A ambientalista Bárbara Johnsen afirma que é necessário usar a expressão “cerrado restante”. Ela entende que, ao longo do tempo, houve menor atenção com o bioma por causa de sua aparência acinzentada, e em um preconceito de que seria menos opulento, como são a floresta amazônica ou a mata atlântica.
Ela recorda que, há três décadas, a cidade era principalmente formada por propriedades familiares, tanto para consumo interno como para venda ao país inteiro. Produtos como mangaba, baru e pequi faziam sucesso nas casas das pessoas.
“Fazia parte da cultura. As pessoas faziam óleo de baru para fritar o peixe dos nossos rios. Cozinhávamos muito com óleo de pequi e aí não tem mais. Hoje as pessoas daqui compram óleo de soja industrializado.” A ambientalista enfatiza que os produtores trocavam sementes crioulas (para ter diversidade de características e ficar mais resistente às pragas locais) de milho, arroz e feijão, por exemplo. “Ao invés das crianças tomarem suco de mangaba, estão bebendo refrigerante. Há o impacto cultural que faz as pessoas deixarem de extrair o óleo de pequi ou de buriti ou usarem o colorau. Perde-se muito”, afirma Bárbara. Para ela, falta educação ambiental nas escolas e nas famílias, mas a gestão pública se move por quem paga mais impostos.
O professor Geraldo Wilson Fernandes enfatiza que o cerrado é vital para o Brasil por ser a savana mais rica em espécies do planeta, já que 5% de toda a diversidade de plantas que existem no mundo está ou estava no cerrado brasileiro, com originalmente mais de 2 milhões de quilômetros quadrados. “Mais da metade do bioma foi embora, e o que resta tem sido degradado rapidamente por políticas públicas obtusas dos governantes.”
Ele enfatiza que o cerrado produz água para os principais rios brasileiros, incluindo o São Francisco e o Tocantins. “Produz para mais de 70% dessas bacias de grande importância para o país. Toda agricultura do cerrado recebe água das matas. Na hora que não tem mais floresta nenhuma, eu não sei como vai produzir água.” Além disso, ele entende que o problema é que a chuva cai quando não tem mais a savana para absorver isso. Tanto no sertão de Rosa como nas outras áreas do cerrado.
O engenheiro florestal Vicente Resende concorda com a análise de que o cerrado é tratado como o “filho pobre entre os biomas”. “Preocupa-se muito com a Amazônia. Mas esquecem de se preocupar com o pai das águas, que é o cerrado.” Ele explica que o desequilíbrio ambiental causa dificuldades nas culturas. “Quando está chovendo acima da média em um determinado período [como ocorreu no início de 2022], não tem sol. Assim, não se faz fotossíntese e isso gera fracasso com algumas plantas, como o milho.”
Para Geraldo Wilson Fernandes, a situação não é irreversível, mas seria necessário cessar o desmatamento no cerrado imediatamente. “Restaurar é mais caro do que proteger. Ainda tem chance, mas precisa de estratégias inteligentes e ouvir a ciência.”
Para o frei Gilvander Moreira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a monocultura é uma desgraça, já que as empresas não estão preocupadas em restaurar, mas em plantar eucalipto. “Todas essas cidades têm mais de 80% de propriedades destinadas à monocultura do eucalipto. Precisamos criar leis para frear o eucalipto. Esse exagero afeta demais o ecossistema do cerrado.”
Ele explica que um problema é que as raízes do eucalipto são na vertical. O tamanho da raiz equivale ao tamanho da árvore, com 20, 30 metros. “Ela chupa água dos lençóis freáticos. O eucalipto tem casca fina. Não retém água. A folha é fininha também. Não retém água. Não tem aquelas copas frondosas do cerrado. O exagero de assoreamento e de entupimento de nascentes de rios e lagoas é uma coisa absurda. Sobre vários aspectos, a cultura do eucalipto é infernal porque destrói a vida.”
O chefe da Embrapa Floresta, Erich Gomes Schaitza, avalia de forma diferente. Segundo os dados de que dispõe, no trecho relativo ao caminho da boiada, Morro das Garças e Cordisburgo eram, em 2015, as áreas com muito eucalipto ao longo do caminho. “Mas regionalmente havia um uso de 5% a 15% da área dos municípios com eucalipto. Não é exagerado.” No entanto, segundo o levantamento de sete anos atrás disponível, na área em que Rosa passou com os vaqueiros, a quantidade de eucalipto chega a 70%. Para ele, o fato de as árvores serem altas causa uma percepção de que as cidades estão tomadas pela monocultura. Em geral, segundo acredita, o eucalipto não é um deserto de biodiversidade e abriga mil espécies diferentes.
O presidente da Sociedade dos Amigos do Memorial Manuelzão e de Revitalização de Andrequicé (Samarra), José Antonio de Souza, entende que é necessário cultivar a cultura de preservação da memória da cidade para que agricultores e suas famílias ajudem a cuidar não somente da história, mas do cerrado que restou. “É nosso patrimônio, e que não pode ser esquecido.”
Entre as iniciativas da entidade, está a reunião de trabalhadoras rurais que bordam suas lembranças em Andrequicé. Márcia Alves de Macedo, de 62 anos, procura bordar o cerrado desordenado. Pela literatura, começou a entender melhor o que tinha por perto, a vereda, o cerrado. “O que ele escreveu é o que falta hoje. As veredas estão todas assoreadas. Os entulhos não deixam a água correr. Eu cresci comendo fruta do cerrado: murici, inharé, muta, cajuzinho. Bordar é uma forma de recordar.”
Jornadas e mandiocas
Na travessia por onde passou a boiada de Guimarães Rosa, em Felixlândia, a 70 quilômetros de Três Marias, a agricultora Denise Gomes Barbosa, de 48 anos, tem dupla jornada porque a mandioca que planta não rende como antes. “Não dá para viver do que produzo.” Ela mora na comunidade de Poções. Precisou arrumar um emprego como auxiliar de serviços gerais em um supermercado da cidade, onde recebe um salário-mínimo. Além disso, ela conseguiu com a dona do estabelecimento vender a farinha e o beiju de mandioca que produz pela manhã ou de noite. O mercado consegue 30% de lucro sobre o valor que a agricultora pratica. “É alguma coisa. Na roça é onde me sinto feliz.”
Para o agricultor Renê Fernandes Costa, de 47 anos, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Felixlândia, o impacto do clima tem sido mais cruel desde 2009. “O clima não está ajudando. Aquela chuva descompassada. Muito por um período e depois acaba. Estamos prevendo uma seca de março até outubro.” Para piorar, ele constata que os insumos estão bem mais caros. Em setembro do ano passado, recorda, gastava R$ 100 com adubo. Hoje está R$ 480. “Estamos sobrevivendo. Só fico porque gosto muito. A maioria das pessoas da minha idade já desistiu.” Na cidade, 200 trabalhadores estão cadastrados no sindicato, “mas muitos estão desistindo da roça para ir para empresas”.
No terreno em que ele vive com a família, no distrito de Piancó, não precisava, antes, da água do poço artesiano. Nos fundos do terreno, o córrego Jundiá está seco, como também o capim, a cana, a bananeira ou o pé de abóbora. A família vive principalmente do queijo que vende nas comunidades e na cidade.
Os pais dele, Maria de Lourdes, de 70 anos, e José Hilário, de 78, recordam que há 50 anos o cerrado era outro. Foram deixando de plantar produtos como algodão, melancia, arroz e araticum. “Nem minhas frutas prediletas, o bacupari amarelinho ou a laranja-da-terra, rendem mais. Sumiu do cerrado”, diz José. Maria de Lourdes exemplifica que a roça, para eles, fazia com que deixassem de ir à farmácia. “Com produto natural, ninguém adoecia. A gente não consumia nada industrializado.”
Seca na terra do escritor
Cem quilômetros adiante, em Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa, o agricultor Genésio Alves dos Santos, de 61 anos, lamenta que os mais jovens tenham deixado a área rural. “Lembro que tinham três meses de seca. Deixei de trabalhar com a moranga há uns 12 anos. A principal queixa dos trabalhadores é a falta de água.”
Genésio é o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Cordisburgo e Araçaí, cidades em que ele estima haver 2.700 trabalhadores. Ele explica que as prefeituras têm instalado poços artesianos, mas é necessário arcar com custos. “Se uma pessoa tem que pagar R$ 70 no mês, por exemplo, fica inviável. Antes, não precisava.” Ele não sabe dizer quantos trabalhadores desistiram da roça, até porque 80% dos agricultores deixaram de pagar a taxa de R$ 20 por mês.
Na cidade, não tem quem não conheça José Osvaldo dos Santos, de 70 anos, que, em Cordisburgo, todos chamam de Brasinha. Ele é uma das principais referências na cidade. Ele criou o ponto de memória “Aqui já é sertão” em homenagem a Guimarães Rosa e às pessoas sertanejas. “Rosa era muito preocupado com as questões ambientais. Que ele inspire mais gente a pensar sobre isso. Hoje, por exemplo, é difícil pensar onde tem cerrado por aqui, que também está coberto por eucalipto.” Ele coleciona objetos antigos e transformou uma casa em um museu de memórias da cidade.
Cordisburgo ainda estimula a indústria turística, como é o projeto “Caminhos de Rosa”. Na fazenda Paulista, que foi o lugar em que Guimarães Rosa dormiu em Cordisburgo durante a rota da boiada, o veterinário André Ferreira resolveu oferecer vivência para turistas no lugar. É possível até ficar no mesmo quarto em que o escritor repousou durante a estada dele no lugar. No corredor principal, é o último à esquerda. Mas não há lembranças materiais dessa ilustre passagem. Hoje, da janela do quarto, ainda é possível observar o cerrado restante. Inspirado no olhar ambientalista do escritor, o projeto promete boas práticas, como agricultura de baixo carbono, redução de lixo e de descartáveis. O contato com a natureza tem preço de R$ 300 por dia.
Na fazenda trabalha Sidenildo Fróes, de 61 anos, um dos últimos vaqueiros da região. Ele trabalha na atividade desde os 13 anos de idade. Mas só teve a primeira carteira de trabalho assinada recentemente, quando chegou à fazenda, há sete anos. Ele foi se adaptando a cuidar do cerrado e do eucalipto. “Meus netos não querem comer as coisas da roça. Comem miojo.” Junto dele, Jeferson de Jesus, de 19 anos, não quer trabalhar na roça, mas é necessário por enquanto. Nunca conseguiu estudar, seu maior sonho. “Minha mãe não quer que eu trabalhe com isso, mas, por enquanto, é o jeito.” A família vive em São Gonçalo do Rio das Pedras, a 200 quilômetros dali. A mãe vive de plantar abacaxi e urucum, mas não é possível sustentar a família. “Quando estou com ela, eu ajudo. Mas hoje ela queria que eu fosse estudar.”
Em Araçaí, 15 quilômetros adiante, e com 95% de trabalhadores com sua propriedade familiar, segundo o sindicato, foi a última cidade da boiada de Rosa. Pelas ruas, Adeleco Moreira Filho, de 74 anos, ainda trabalha de sol a sol, mas a rotina na roça, em que se acostumou, não inclui mais o milho e a banana, porque tudo ficou mais caro e difícil. “Chovia mais. O melhor é que tenho aposentadoria para sustentar.”
Na área rural, na fazenda São Francisco, a 20 quilômetros do centro de Araçaí, está o último trecho da chegada da boiada em 1952. Uma placa no portão anuncia o evento histórico, mas o agricultor Luciano dos Santos, de 61 anos, que trabalha no local, queria ter estudo para entender melhor a placa, que foi apresentada a ele pela equipe de reportagem. “Eu estou há mais de um ano e nunca tinha visto a placa. Agora fiquei emocionado. De pensar que outros vaqueiros chegaram até aqui.” Ele não se imagina fora da roça. “O clima é diferente. Trabalho desde os 12 anos. O milho já não é a mesma coisa. Antes, chovia. Recebo um salário-mínimo, mas não tenho ideia se um dia vou me aposentar.”
Histórias de desigualdade fazem lembrar a conversa que frei Gilvander Moreira, da CPT, teve com o vaqueiro Manuelzão, na década de 1990, que virou personagem de Guimarães Rosa. “Ele me disse que sentia saudade do tempo em que os caminhões levavam comida pela estrada. Hoje levam carvão para matar a fome dos fornos das siderúrgicas.” Para combater esse caminho, o frei crê que são necessárias práticas de agroecologia, trabalhos cooperativos entre famílias agrícolas, frear o uso dos agrotóxicos e pressionar por leis que protejam o cerrado.
Frei Gilvander explica que 22 escolas de agricultura familiar estão situadas no sertão mineiro. A necessidade de união entre os trabalhadores, educação ambiental, pressão por leis ambientais efetivas aliadas à sensibilidade das gestões públicas e das empresas com o futuro seriam os caminhos, em tese, simples. Na escola da comunidade das Pedras, Sophia, de 11 anos, sonha ser veterinária para cuidar dos bichos da região. “Espero que a gente more aqui ainda.” Ou, como escreveu Guimarães Rosa: “sertão é dentro da gente”.
Essa reportagem é resultado das Microbolsas Alimentação e Mudanças Climáticas realizada pela Agência Pública, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e a Cátedra Josué de Castro. A 14ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.