Sustentabilidade ao mar: projetos lançam luz sobre a indústria pesqueira no Brasil
Nunca a humanidade consumiu tanto pescado como agora. Segundo o estudo mais recente da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, do inglês) sobre o estado mundial da pesca, lançado no ano passado, o consumo mundial de peixes cresceu mais de 120% em quase três décadas. E o volume de capturas alcançou o índice recorde de 96,4 milhões de toneladas em 2018. Mas esse apetite tem um custo alto e ainda pouco conhecido sobre o ambiente marinho.
Estima-se que, atualmente, um terço dos estoques globais de peixes seja pescado de forma abusiva, acima dos níveis biologicamente sustentáveis. A sobrepesca ameaça o equilíbrio das espécies aquáticas e, também, a subsistência dos mais de 120 milhões de pescadores e trabalhadores do ramo que dependem diretamente das cadeias de valor da atividade. Quase metade dessa força é formada por mulheres.
No Brasil, uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) revelou “graves problemas de falta de informação, de planejamento e de fiscalização” que colocam em risco a biodiversidade marinha e a própria atividade de pesca por aqui. Diante disso, o TCU pediu ao Ministério da Agricultura , Pecuária e Abastecimento (Mapa), atualmente responsável pelo manejo pesqueiro nacional, que até o fim do ano revise a gestão da atividade.
“Estamos falando de dois temas importantes. Um deles é a biodiversidade e sua proteção. Outro é a segurança alimentar das pessoas, seja pela pesca ou maricultura. É fundamental que a gente gerencie a pesca de forma sustentável. Isso traz benefícios para quem pesca, gera ganhos econômicos e garante a qualidade do meio ambiente que sustenta essas comunidades”, explica ao Um Só Planeta Alexander Turra, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).
Mudanças à vista
Mas os ventos estão mudando. De pouco em pouco, surgem iniciativas inspiradoras dentro da chamada “blue economy” ou “economia azul”. São projetos baseados numa economia mais comunitária, pautados no desenvolvimento sustentável e atentos à necessidade de transparência da cadeia, o que permite maior segurança para o produtor e também para o consumidor.
Um desses exemplos é a Olha o Peixe!, negócio de impacto socioambiental criado há três anos pelo oceanógrafo e mestre em sistemas costeiros e oceânicos Bryan Renan Muller. Instalado no município litorâneo de Pontal, no Paraná, o projeto faz a ponte entre os pescados e frutos do mar coletados por dez comunidades do litoral paranaense e consumidores em sete cidades vizinhas, incluindo Curitiba, a 80 km de Pontal.
Com a prática de preços justos, que podem chegar ao triplo do praticado por um atravessador, a Olha um Peixe! reduziu essa dependência e hoje os acordos beneficiam mais de 96 famílias envolvidas na pesca artesanal. Resultado? Pelos cálculos do projeto, só em 2020, alguns pescadores registraram aumento de 200% na renda mensal. Do outro lado da mesa, consumidores passaram a conhecer a origem do que comem.
Pescadores parceiros do projeto Olha o Peixe!: valorização das comunidades locais. — Foto: Divulgação/Olha o Peixe!
Os peixes e frutos do mar são vendidos congelados, em um processo de preparação que também envolve as comunidades pesqueiras, e chegam em embalagens biodegradáveis feitas a partir de resíduo de mandioca e milho, rotuladas com informações do nome do pescador, região de captura, nome científico e popular da espécie. Entre os principais pescados vendidos estão nomes pouco comuns como o peixe-porco (peroá) e a clariana (“tem um pouco mais de espinha, excelente petisco”).
Atualmente, 80% das vendas da Olha o Peixe! são via clube de assinatura de pescado, e 20% de pedidos avulsos e restaurantes. Nas redes sociais, o foco é no trabalho de divulgação da cultura pesqueira e de uma alimentação mais saudável. De forma descontraída, o projeto apresenta novas espécies, compartilha receitas, promove lives com chefs e os próprios pescadores “mestres-cucas”.
“A pesca artesanal depende muito das condições ambientais, os pescadores também têm períodos de safra, por isso, precisamos nos acostumar com a diversidade de espécies locais. Do contrário, estimularemos uma pesca insustentável”, pontua Bryan. Por fortalecer o consumo consciente e a pesca artesanal, no final de 2020, a empresa conquistou o primeiro lugar no Programa Natureza Empreendedora, da Fundação Grupo Boticário.
Na rota dos cardumes
Um dos peixes mais antigos presentes no cardápio humano é o atum, que se tornou vítima do próprio sucesso. O peixe já figurou entre as dez principais espécies com mais de um terço dos estoques submetidos a níveis de pesca biologicamente insustentáveis — um risco para a diversidade das espécies e o futuro do aprovisionamento alimentar.
O atum é considerado um grupo marinho altamente migratório, seus cardumes estão hora na costa do Brasil, hora na costa do continente africano. Por essa razão, a Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico (ICAT), organização regional de gestão da pesca, gere as capturas de atum a partir de cotas de captura permitidas. Todos os anos, os países banhados pelo oceano precisam prestar contas, mostrando o quanto pescaram.
Ele explica que os registros de produção no país são feitos a partir de mapas de bordo, um formulário que o pescador preenche com informações como os tipos de capturas feitas e as áreas exploradas, um sistema considerado pouco eficiente para controle. Segundo o diretor científico da Oceana, o “apagão de dados” também foi acionado por instabilidades políticas e mudanças ministeriais. O ordenamento da atividade já esteve sob a alçada Ministério da Pesca e Aquicultura, extinto em 2015, depois passou para o Ibama sob a pasta ambiental, e agora está sob a tutela do Ministério da Agricultura.
Buscando promover a modernização da coleta e sistematização de informações, agregando mais transparência e sustentabilidade à produção de atum do Brasil, a Oceana, em parceria com a Aliança do Atlântico para o Atum Sustentável (Aliança do Atum), que reúne empresários exportadores de atum, e a Global Fishing Watch (GFW), se uniram para criar em 2019 a Open Tuna.
É possível acompanhar, praticamente em tempo real, a atividade pesqueira de 14 embarcações associadas ao projeto e obter dados sobre as quatro principais espécies-alvo da frota capturadas na costa brasileira: albacora bandolim (Thunnus obesus) — espécie de atum de maior valor da região, muito valorizada na culinária japonesa, e que responde por 53% das capturas — albacora branca (Thunnus alalunga), albacora laje (Thunnus albacares) e espadarte (Xiphias gladius).
Controle: disponibilizado pela Global Fishing Watch, mapa apresenta as áreas de atuação das frotas participantes do Open Tuna. — Foto: Reprodução/OpenTuna
“As pessoas aos poucos estão se dando conta de que os recursos pesqueiros são patrimônio público, e que deve haver transparência no processo de uso dos recursos naturais”, destaca Martin. Os dados do Open Tuna são obtidos tanto por um aplicativo que a frota usa para preencher eletronicamente o mapa de bordo quanto por rastreamento via satélite das embarcações. Ao integrar diferentes fontes de dados dentro um sistema de verificação cruzada, cria-se uma espécie de malha-fina, que garante a confiabilidade das informações.
A iniciativa — que tem entre os parceiros o Projeto Albatroz, Fundação Pró-Tamar, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e a consultoria Paiche, especializada em consumo responsável — venceu o prêmio Tuna Awards 2021 na categoria Sustentabilidade, do Ministério da Agricultura, Pesca e Alimentação da Espanha.
Ciência cidadã
Despertar a conscientização da população para a necessidade de sistemas de pesca mais sustentáveis também é importante na guinada para um consumo mais consciente. Uma iniciativa que se destaca aí é o Ictio, um banco de dados e aplicativo de celular criado para registrar a pesca realizada na bacia amazônica.
App Ictio: aplicativo permite inserir informações de espécie, captura e local de pesca. — Foto: Ecoporé/Divulgação
O aplicativo, desenvolvido pelo projeto Ciência Cidadã para a Amazônia, conta com ajuda de comunidades de pescadores e da população ribeirinha em geral para a produção de informações em formato digital sobre as atividades de pesca na região. Os dados são então usados por diferentes instituições de pesquisa para promoção de planos de manejo sustentável das espécies migratórias na região.
Apenas entre abril e junho de 2021, foram compartilhadas 57.372 observações no aplicativo e plataforma Ictio. No topo do ranking de espécies mais registradas aparece o Prochilodus nigricans, conhecido no Brasil como curimatã ou curica ou papa-terra.
Registros das espécies em diferentes pontos dos rios amazônicos ajudam os pesquisadores a entender a migração dos peixes e eventuais obstáculos para a movimentação livre dos cardumes. A plataforma Ictio está presente em cinco países amazônicos: Brasil, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia.
Fonte: Um Só Planeta