Crescimento da população e busca de alimento explicariam as migrações anuais
Em busca de uma distração durante a pandemia, a bióloga Renata Sousa-Lima, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), entrou no Happywhale, um site de imagens de mamíferos marinhos do mundo inteiro, cada um identificado pelas manchas de suas nadadeiras caudais. Ali a pesquisadora encontrou o Raulzito, baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae) macho batizado por sua equipe em homenagem ao cantor Raul Seixas (1945-1989), que ela tinha encontrado no arquipélago de Abrolhos, no sul da Bahia, em 2004. A foto indicava que o animal, em 2016, estava na península Antártica.
“Era intrigante”, conta. “As jubartes do Brasil não costumavam frequentar a península Antártica, área de alimentação de animais do Pacífico, como as da Colômbia, Peru e Equador”.
Com 16 metros de comprimento, 40 toneladas de peso e tempo de vida entre 60 e 80 anos, as baleias dessa espécie que frequentam o litoral brasileiro se reproduzem principalmente nas águas mais quentes de Abrolhos entre julho e novembro. Depois, migram no verão para as ilhas Sandwich e Geórgia do Sul, no Atlântico Sul, onde se alimentam de cardumes de krill, pequenos crustáceos parecidos com camarões. A península Antártica, banhada pelo oceano Pacífico, onde Raulzito foi flagrado, fica a quase dois mil quilômetros (km) dessa tradicional área de alimentação.
Para entender a situação, Sousa-Lima mobilizou colegas do Brasil, Equador, Colômbia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Ucrânia. Em conjunto, identificaram 4.302 baleias-jubarte na região antártica. Doze delas, fotografadas de 2016 a 2020, eram da população de jubartes do Brasil, das quais seis estavam em seu local habitual de alimentação, no Atlântico Sul, e outras seis a oeste da península Antártica, no Pacífico. Em 2016, exibindo a cauda na península Antártica, também estava Nina, que Sousa-Lima viu ainda filhote em 2004 em Abrolhos e registrou com o nome de sua filha.
Como detalhado em um artigo publicado em dezembro de 2021 na revista científica Scientific Reports, as conclusões se apoiam em informações e imagens do Happywhale, que usa algoritmos de processamento de imagem para comparar fotos de baleias enviadas pelos próprios pesquisadores e por turistas com imagens de coleções científicas desses animais. “A plataforma tem um acerto de mais de 95% e faz em segundos o que fazíamos manualmente, comparando foto por foto, com dois a três anos de atraso desde a data dos registros”, explica o médico veterinário Milton Marcondes, coordenador de pesquisa do Projeto Baleia Jubarte e primeiro autor do artigo.
“Às vezes, quando a baleia levanta a cauda, a água sobe e as gotas podem se misturar às manchas, tornando mais difícil diferenciar uma coisa da outra. Mas o serrilhado não muda. A soma dessas informações, feitas por meio de algoritmos do site, dá um grau de acerto que não havia com pessoas avaliando”.
Segundo Sousa-Lima, encontrar baleias do Brasil na península Antártica reforça uma impressão que muitos pesquisadores já tinham. O biólogo Marcos César de Oliveira Santos, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo, concorda: “Era uma situação esperada, porque já se havia visto o intercâmbio de populações de jubartes no hemisfério Norte”. Santos fotografou e catalogou jubartes em suas viagens à região antártica de 1998 a 2008, perguntando-se se grupos dos dois lados da América do Sul se encontrariam ali. Em 2021, publicou o e-book Baleias e golfinhos no litoral paulista.
A população desses animais na costa brasileira vem crescendo nas últimas décadas: passaram de cerca de três mil, em 2009, para um número entre 20 mil e 25 mil, de acordo com o Projeto Baleia Jubarte. É uma quantidade próxima à de antes da caça desenfreada no século XX, proibida no Brasil em 1966 e só encerrada efetivamente na década de 1980. Para Santos, o crescimento da população pode motivar a exploração de outros locais de alimentação ou a retomada de rotas de migração usadas antes de os animais serem quase dizimados.
A comparação entre o canto de duas populações de jubartes, uma do litoral brasileiro e outra da costa oeste da América Latina, reforçou a ideia de que essas populações têm se encontrado e aprendido em conjunto. A bióloga sérvia Divna Djokic chegou a essa conclusão após analisar os cantos dos dois grupos, durante sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021 na UFRN, sob orientação de Sousa-Lima. “Cada população tem um canto diferente, que pode mudar a cada ano, mas parece que as duas populações tiveram contato em quase todos os anos, de 2016 a 2019, trocando os seus cantos”, diz. “Em alguns anos o canto era muito parecido e em outros, apenas com alguns trechos semelhantes”. Ela atribuiu as semelhanças ao fato de os animais terem se encontrado na mesma área de alimentação da península Antártica.
Krill e encalhes
Os pesquisadores apontam outras causas da mudança da área de alimentação das jubartes do Brasil.
“A escassez de krill na região da ilha Geórgia do Sul, em razão das mudanças climáticas, pode estar motivando a migração das baleias para a península Antártica”, sugere Sousa-Lima.
Segundo Marcondes, a redução no estoque de krill na ilha Geórgia do Sul poderia ser uma das causas dos encalhes de baleias jovens magras, a maioria na costa de São Paulo e de Santa Catarina, onde há grandes cardumes de sardinha e tainha, das quais as jubartes também se alimentam. “As baleias podem se emalhar [se prender] em equipamentos de pesca quando vêm para perto da costa, em busca de alimento”, diz ele. Segundo o Projeto Baleia Jubarte, 230 animais encalharam e morreram no litoral brasileiro em 2021, três vezes mais que os 76 do ano anterior. “Geralmente, metade dos animais que encalham é filhote, mas em 2021 quase todos foram baleias juvenis, de até cinco anos, e muitos deles estavam magros”.
Fonte: Um Só Planeta