Brasil é o país onde estradas e ferrovias apresentam maior risco a primatas
Foto: Sally Foster/AMLD
Brasil é prioridade na avaliação global do risco que rodovias e ferrovias representam para a sobrevivência de primatas. A Mata Atlântica e a Amazônia estão no topo de dois rankings elaborados por cientistas com áreas que precisam receber ações para reduzir impactos negativos sobre esses animais. A recomendação é que se evite a construção de vias, linhas de transmissão de energia, oleodutos e canais de água por causa da vulnerabilidade das espécies.
O estudo, elaborado por pesquisadores de Portugal e da Espanha, destaca que 65% das espécies de primatas do planeta estão ameaçadas de extinção. As causas geralmente apontadas para essa perda de diversidade são a expansão agropecuária, a extração ilegal de madeira, a caça e a captura de animais.
“No entanto, infraestruturas de transporte, como estradas e ferrovias, linhas de energia, oleodutos e canais de água artificiais também são importantes e muitas vezes esquecidos na atual crise de biodiversidade”, salientam os cientistas autores do trabalho.
Dado da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) citado no estudo indica que 92 das 512 das espécies de primatas conhecidas (18%) são impactadas diretamente por rodovias e ferrovias.
Além dos atropelamentos, mazela mais evidente, as consequências negativas incluem o chamado “efeito barreira” – quando a presença da via inibe ou impede o deslocamento dos animais, principalmente dos arborícolas, que se movimento exclusivamente pelas copas das árvores. Também pesam os aumentos do desmatamento e da ocupação humana, com todas as consequências desses processos (como transmissão de doenças, caça, tráfico de fauna e outras).
E, se cuidados não forem tomados, a situação pode piorar. O estudo cita que 25 milhões de quilômetros de rodovias e ferrovias devem ser construídos até 2050, sendo que 90% dessa nova malha viária estará em países em desenvolvimento, incluindo regiões tropicais com enorme diversidade de primatas.
Gestão diferenciada e adequada
Autor principal do trabalho, o biólogo e pesquisador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Fernando Ascensão, disse à Mongabay que “a ideia de termos esses dois rankings é promover a gestão das redes de infraestrutura de uma forma diferenciada.”
O estudo apresentou dois mapeamentos: as Áreas Prioritárias para Mitigação, com as regiões de grande valor para a conservação de primatas e alta densidade de rodovias, ferrovias, linhas de energia, oleodutos e canais de água artificiais, e as Áreas Prioritárias para Preservação, contendo regiões valiosas para a conservação de primatas e baixa densidade dessas estruturas.
“Há zonas no planeta, nas diferentes regiões, dentro dos países, seja qual for a escala considerada, em que devemos atuar na mitigação, onde a infraestrutura está construída e tem um maior ou menor impacto na biodiversidade e, em particular, nos primatas”, explicou Fernando. “E há zonas onde ainda não existe uma grande influência de infraestruturas, nomeadamente nas zonas tropicais. Essas zonas devem ser mantidas, na medida do possível, desprovidas dessas infraestruturas, dado os impactos negativos que irão advir da sua construção.”
Para elaborar os rankings, os pesquisadores trabalharam com dados da IUCN de 475 espécies de primatas, que estão distribuídas em quatro regiões: Neotropical (Américas Central e do Sul), África, Madagascar (país insular do continente africano, mas com relevância para ser tratado isoladamente) e Ásia.
A localização e a distribuição das rodovias, ferrovias e demais estruturas foram adquiridas na plataforma OpenStreetMap (projeto de mapeamento colaborativo). Também foi feita uma pesquisa em publicações e em questionários enviados para primatólogos de todo o mundo.
Os cientistas elaboraram dois mapas a partir de todos os dados coletados e analisados. Um mostrando os países de acordo com valores de conservação, indicando as áreas prioritárias que devem ser protegidas por ainda abrigarem rica diversidade de primatas, e outro com os países de acordo com a densidade de infraestruturas instaladas. A sobreposição desses dois mapas permitiu identificar as Áreas Prioritárias para Mitigação e as Áreas Prioritárias para Preservação.
Quais são as áreas prioritárias
Os principais países identificados com alto valor de conservação pela riqueza de primatas e grande impacto de rodovias e ferrovias já instaladas foram Brasil, Tailândia, Indonésia e China – pela ordem do ranking. A Mata Atlântica, bioma brasileiro que abriga menos de 10% de sua cobertura florestal original, foi destacado por Fernando Ascensão como uma área onde a “mitigação de infraestrutura é urgentemente necessária.”
Nas áreas com alta densidade de rodovias e ferrovias da região Neotropical, que inclui o Brasil, o estudo identificou 12 espécies de primatas com maior vulnerabilidade aos efeitos dessas vias.
“Estas são as espécies a que se deve dar prioridade na gestão de infraestruturas, principalmente no estabelecimento de passagens e corredores entre manchas de habitat. É o caso do mico-leão-dourado, que tem sido foco de importantes medidas de mitigação implementadas na BR-101, fruto do trabalho de vários pesquisadores, com destaque ao pessoal da Associação Mico Leão Dourado”, afirmou o biólogo português.
A Mongabay, em reportagem publicada em 22 de outubro de 2020 sobre a implementação de viadutos vegetados para fauna no Brasil, descreveu a infraestrutura instalada na BR-101 voltada para a conexão dos trechos de Mata Atlântica existentes na região de Silva Jardim (RJ).
Além do grande viaduto vegetado construído na altura do km 218, a concessionária responsável pela rodovia, Arteris Fluminense, teve de instalar 15 passagens de fauna subterrâneas (que passam por baixo da rodovia), dez estruturas que ligam copas de árvores situadas em lados opostos da estrada (para fauna arborícola, que inclui o mico-leão-dourado), nove passagens sob pontes, mais de 30 quilômetros de cercas e um sistema de sinalização para motoristas indicando a presença de animais silvestres. Tudo em um trecho de 72 quilômetros da estrada, entre os municípios fluminenses de Rio Bonito e Casimiro de Abreu.
A principal função das passagens de fauna instaladas nessa região é reduzir o efeito barreira promovido pela estrada, permitindo a volta da circulação de animais entre trechos isolados de floresta.
O primatólogo e professor da Universidade Federal de Viçosa, Fabiano Rodrigues de Melo, explicou à Mongabay que a quebra da conectividade da paisagem com a presença da rodovia isola grupos de animais de uma mesma espécie, impedindo a troca de material genético entre eles e comprometendo o potencial de adaptação às mudanças do meio onde vivem.
Além do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), estão na lista das espécies mais vulneráveis em áreas com muitas estradas e rodovias da região Neotropical o macaco-prego-galego (Sapajus flavius), o mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus), o mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), o bugio-ruivo (Alouatta guariba), o bugio-de-mãos-ruivas-do-maranhão (Alouatta ululata), o sagui-de-tufos-brancos (Callithrix jacchus), o sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillate), o sagui-de-wied (Callithrix kuhlii), o sagui-da-serra (Callithrix flaviceps), o sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita) e o sagui-de-cara-branca (Callithrix geoffroyi). Todas ocorrem no Brasil.
Outras 20 espécies das demais regiões do planeta também foram consideradas altamente vulneráveis às rodovias e ferrovias já instaladas nas áreas onde vivem.
O Brasil também encabeçou a lista de áreas com grande diversidade de primatas e poucas rodovias e ferrovias. O destaque nesse ranking ficou para a bacia hidrográfica do Rio Amazonas. Na sequência, estão a República Democrática do Congo, a Colômbia e a Indonésia.
“As espécies dessas áreas devem ser alvo de programas distintos, com medidas que visem a não fragmentação do habitat. Deve-se evitar construir estradas”, afirmou Fernando Ascensão. O pesquisador disse que macacos como o guariba-vermelho (Alouatta juara), o bugio-vermelho-das-guianas (Alouatta macconnelli) ou o bugio-preto-da-amazônia (Alouatta nigerrima), que estão classificados com estado de conservação menos preocupante, provavelmente serão muito impactados e correrão perigo se a atividade humana chegar a seus territórios.
Na Amazônia brasileira, pesquisando soluções
A bióloga Fernanda Abra, pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Conservação e Sustentabilidade da Smithsonian Institution (EUA), desenvolve um projeto para testar dois modelos de passagens superiores para fauna arborícola na rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), no interior da Terra Indígena Waimiri-Atroari.
“O projeto Reconecta quer obter informações com base na ciência para orientar a implantação de passagens de fauna adequadas e com boa relação custo-benefício para atender primatas e outras espécies que se deslocam pelas árvores”, explicou a cientista.
Trinta estruturas estão sendo construídas em 125 quilômetros de rodovia asfaltada que corta um trecho da Floresta Amazônica muito bem conservada. Os locais de implantação foram definidos pelos líderes da comunidade indígena, que conhecem a fauna da região.
Metade das passagens terá estrutura mais simples, feitas com uma corda bem grossa, e o restante será construída com um trançado de cordas. Abra explica ser um desafio pensar em modelos de estruturas para primatas, pois as espécies atendidas podem ter diferentes formas de locomoção, como saltos, deslocamento em quatro patas e braquiação (quando os animais vão de galho em galho, utilizando apenas os braços), por exemplo.
Mais de 15 espécies de animais arborícolas habitam o trecho da floresta onde ocorre a pesquisa. São ouriços, marsupiais, roedores, répteis e primatas, como o macaco-aranha-de-cara-vermelha (Ateles paniscus), espécie ameaçada de extinção que tem o comportamento de não tentar atravessar a rodovia.
Abra explica que, além do movimento gerado pela circulação de pessoas e veículos, o vão entre as copas das árvores situadas nos lados opostos de uma rodovia impede a travessia de animais de espécies que vivem no alto. “Os atropelados são os semi-arborícolas. Para os essencialmente arborícolas, o problema é o efeito barreira, uma consequência invisível que, no longo prazo, é bastante perigosa para essa fauna”, explicou ela à Mongabay.
O projeto, que começou em setembro do ano passado, com o monitoramento de animais atropelados, terá duração de dois anos e meio. Atualmente, os postes de sustentação das passagens estão sendo instalados. Assim que as passagens de fauna estiverem prontas, será iniciada a fase de monitoramento com câmeras para verificar quais animais as utilizam, seus comportamentos e a efetividade dos modelos.
O resultado dos trabalhos, segundo Fernanda Abra, será entregue ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Seminários serão preparados em conjunto com o órgão e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para disseminação do conhecimento adquirido.
O pesquisador da Universidade de Lisboa, Fernando Ascensão, destacou em seu estudo que quase 200 milhões de hectares de floresta tropical foram perdidos nos últimos 20 anos em regiões com primatas. O Brasil, a Indonésia, a República Democrática do Congo, a China e a Malásia são responsáveis por metade dessas perdas.
Ele explica que o conhecimento científico já comprovou que a mortalidade e as mudanças comportamentais associadas às rodovias, ferrovias, linhas de transmissão de energia, oleodutos e canais de água impactam severamente os primatas.
“O poder político tem um papel fundamental para orientar as políticas de desenvolvimento de infraestruturas. É fundamental que os decisores tenham acesso e usem a informação que nós, cientistas, já produzimos, de modo a permitir um melhor planeamento das novas rodovias e ferrovias; assim como informar sobre melhores formas de reduzir os impactos existentes”, concluiu Ascensão.
Vítimas do tráfico, saguis invasores podem levar macacos da Mata Atlântica à extinção
Imagem do banner: micos-leões-dourados. Foto: Sally Foster/AMLD