Como comunidades tradicionais estão salvando o Cerrado por meio da comida
Em novembro, as palmeiras de macaúba (Acrocomia aculeata) começam a dar cocos maduros. Em janeiro, o solo está repleto deles – é quando 67 famílias de Jaboticatubas, Minas Gerais, recolhem os cachos que serão levados para casa.
A macaúba é fundamental para diversas comunidades agrícolas tradicionais do Cerrado. Sítios arqueológicos remontam seu uso desde a pelo menos 9.000 a.C. Do coco, todas as partes são aproveitadas, de sua polpa amarelada à castanha em seu núcleo. É o lanche preferido das crianças e é usado para fazer uma farinha altamente nutritiva, usada no preparo de pães e biscoitos. Os animais também a comem.
A população local cobre os cocos com capim e melaço para que fermentem. Em abril, a polpa é espremida para extrair o óleo a ser usado na cozinha, em lamparinas e na fabricação de sabão. Algumas famílias ainda sincronizam sua produção com as fases da lua e utilizam prensas rústicas de madeira. Raimunda Francisca Gonçalves Lopes mistura o óleo com várias plantas nativas para fazer sabonetes medicinais especialmente formulados para tratar picadas de insetos ou acne, ou para curar feridas.
Em 2008, essas 67 famílias de 15 pequenas comunidades do entorno de Jaboticatubas formaram a Associação Amanu para compartilhar e melhorar os métodos agrícolas e de produção e, sobretudo, para potencializar coletivamente o marketing e as vendas. Em seguida, elas solicitaram o apoio da Fundação Slow Food para a Biodiversidade, organização que auxilia projetos agrícolas sustentáveis que conservam a biodiversidade e a cultura locais.
A Amanu tornou-se uma Fortaleza Slow Food registrada, e para isso foi necessário comprovar sustentabilidade ambiental e práticas de produção justas e colaborativas. Essa designação proporcionou às comunidades e famílias a chancela de uma marca sustentável certificada, assim como uma plataforma de vendas e assistência técnica.
Um bioma sob ameaça
Iniciativas como essa são importante fonte de renda para populações rurais da savana brasileira. “Elas também salvaguardam o patrimônio cultural, mantêm as comunidades intactas e protegem um ecossistema em perigo”, diz Marcelo de Podestá, facilitador regional Sudeste da Slow Food Brasil.
Nos últimos 40 anos, o Cerrado se tornou foco de interesse da agroindústria, processo no qual metade de sua vegetação nativa foi arrasada para produzir commodities globais – entre elas carne bovina, soja, milho, algodão, eucalipto e óleo de palma. Originalmente, as pastagens naturais, formações florestais e matas de galeria cobriam cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados, habitat de milhares de espécies, incluindo 10 mil espécies vegetais, muitas delas endêmicas.
Não são apenas a vida selvagem e as plantas que estão em risco. Em 2016, cerca de 12,5 milhões de pessoas dependiam diretamente dos recursos naturais do Cerrado para sobreviver. Tanto o Brasil quanto o restante do planeta necessitam dos serviços ecossistêmicos fundamentais da savana: suas pastagens ajudam a mitigar as mudanças climáticas, oferecem um importante sumidouro global de carbono e formam as cabeceiras dos principais rios que abastecem grande parte do país, incluindo algumas de suas cidades mais populosas.
No entanto, faltam ao bioma as extensas unidades de conservação características da vizinha Amazônia. Para salvar o Cerrado, “precisa haver investimento em conservação fora das áreas protegidas”, diz Mercedes Maria da Cunha Bustamante, professora na Universidade de Brasília.
Um movimento alimentar sustentável em crescimento está tentando fazer exatamente isso, contando com a atuação de comunidades locais como protagonistas no comércio de produtos e administração das terras do Cerrado.
Modos de conservação
Pequenos agricultores familiares, apicultores, comunidades tradicionais e indígenas, quilombolas, ativistas socioambientais dos direitos da terra e até chefs prestigiados estão se aliando à crescente rede alimentar sustentável do Cerrado. Agricultores utilizam poucos pesticidas ou cultivam vegetais, frutas e café orgânicos, além de ingredientes próprios do bioma. Produtores de mel criam espécies de abelhas nativas. E há, ainda, aqueles que coletam e vendem frutas silvestres, castanhas e plantas medicinais em menor escala.
“Precisamos ter um modo de produção humanizado em vez de pensar apenas no produto e no lucro”, afirma Mariana Oliveira Cruz, professora e agricultora de Buracão, em Minas Gerais. “Somos tão dependentes do meio ambiente quanto outras espécies.”
Enquanto muitos agricultores no Brasil devem reservar legalmente uma parte de suas terras para a vegetação nativa, “eles não [necessariamente] têm que garantir a conservação”, explica Isabel Figueiredo, que coordena pequenas doações para o uso sustentável da biodiversidade com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Tipicamente, os pequenos agricultores e as comunidades tradicionais do Cerrado mantêm muito mais vegetação nativa do que o agronegócio, resultando em enormes benefícios ambientais: suas terras preservam espécies de plantas, sequestram grandes quantidades de carbono, proporcionam habitat à vida selvagem e mantém os corredores ecológicos necessários para a migração de animais.
Ao contrário das grandes operações industriais, os agricultores tradicionais respeitam os ciclos sazonais de plantio e queimadas. Dessa forma, conservam os recursos hídricos, elemento valioso em uma paisagem que permanece seca durante metade do ano.
Tesouros comestíveis
Como a macaúba em Jaboticatubas, outro ingrediente nativo do Cerrado que vêm garantindo a preservação do bioma e a geração de renda é a castanha de baru, fruto do baruzeiro (Dipteryx alata). As castanhas são torradas para consumo próprio ou embaladas para venda. Também podem ser moídas em farinha, usadas em doces, ou transformadas em manteiga. A polpa da fruta é utilizada para o preparo de bolos, geleias e outros doces, enquanto as cascas estão sendo usadas experimentalmente em um programa de biomassa pela empresa de cimento InterCement. Como cresce rápido, a árvore é usada em programas de reflorestamento.
Cerca de 300 famílias em Goiás coletam, torram e comercializam a castanha de baru por meio de uma cooperativa, a Copabase (Cooperativa de Base na Agricultura Familiar e Extrativismo em uma Economia Recíproca), que também é certificada como uma Fortaleza Slow Food. A Copabase estima que 15 toneladas de baru foram vendidas em 2019.
A castanha de baru tem sido considerada pelo mercado como um “superalimento”, por ser rica em proteínas e minerais, com mais fibras e 25% menos gordura do que outras castanhas. Muito apreciada, tem sabor que lembra uma mistura de amêndoa com amendoim. As perspectivas de comercialização global são excelentes, à medida que a castanha se populariza.
Enquanto isso, outros produtos do Cerrado crescem em demanda entre os consumidores, sobretudo nas capitais. Eles incluem o coco de babaçu (Orrbignya speciosa), o mel de abelhas nativas sem ferrão, como a mandaçaia (Melipona quadrifasciata), e o gergelim cultivado pela comunidade quilombola Kalunga. Há também diversas frutas comestíveis, muitas desconhecidas fora da região, entre elas a cagaita (Eugenia dysenterica), a mangaba (Hancornia speciosa) e o pequi (Caryocar brasiliense). Versáteis, essas frutas podem se consumidas frescas ou usadas como matéria-prima de geleias, sucos, sorvetes, farinhas, vinhos, biscoitos, bolos e remédios.
O café é também uma grande cultura no Cerrado, sendo que 80% dele é exportado. Mais de 2.350 km2 são plantados somente no estado de Minas Gerais. Empresas sem fins lucrativos estão trabalhando com os produtores para utilizarem menos água e cultivarem o grão de maneira mais sustentável. Um projeto de café supervisionado por Michael Becker, que implementa o Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos no Cerrado, projeto do IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil) que desenvolveu inseticidas e herbicidas naturais, além de estar restaurando áreas desmatadas.
Mercado em crescimento
Há um problema que os coletores e produtores locais devem superar: muitas pessoas que vivem fora do Cerrado não têm ideia do que fazer com as frutas e castanhas cultivadas lá – e porque são cultivadas artesanalmente ou colhidas manualmente, costumam são caras. Porém, durante a última década, estes alimentos têm ganhado popularidade junto à crescente classe média brasileira.
Celebridades como os chefs Bela Gil e Alex Atala, que utilizam ingredientes regionais cultivados por pequenos agricultores, aumentaram a visibilidade e a demanda. Com o lema “Queremos ver o Cerrado no prato do Brasil e do mundo”, os chefs que trabalham com o projeto Cerrado no Prato fazem uso desses produtos em receitas servidas em restaurantes de alta gastronomia, valorizando ainda mais a cultura nativa da região.
Os produtos do Cerrado também estão começando a aparecer nas prateleiras de supermercados gourmet e lojas especializadas nas grandes cidades brasileiras. Eles sempre estiveram disponíveis nos mercados locais, mas com a ajuda de organizações sem fins lucrativos, incluindo a Slow Food, as cooperativas estabeleceram feiras de produtores, como a de Jaboticatubas. A Central do Cerrado, um coletivo de cooperativas, é a que congrega a maior diversidade de produtos, vendidos em sua loja online ou em lugares como o Mercado Municipal de Pinheiros, em São Paulo.
As iniciativas de Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA) também estão se tornando populares, com dezenas de famílias comprando diretamente de agricultores e coletores locais, comprometidas com o apoio à produção. Figueiredo estima que existem cerca de 25 CSAs somente em Brasília.
Há também um pequeno mercado internacional em crescimento. A empresa de cosméticos inglesa The Body Shop compra óleo de babaçu orgânico de uma cooperativa de 150 membros para uso em seus cosméticos. Já as castanhas de baru são vendidas nos Estados Unidos e foram apresentadas no programa Good Morning America pela nutricionista Rachel Beller.
Em geral, o mercado do Cerrado ainda é relativamente pequeno, e a única razão pela qual estes pequenos produtores estão no jogo é porque construíram associações, como os produtores de macaúba de Jaboticatubas e as 186 famílias da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco (Coppalj), no Maranhão, criada em 1991 para viabilizar comercialmente a produção de babaçu. Ao mesmo tempo, a certificação da Rainforest Alliance ou o reconhecimento pelo Módulo Clima da Rede de Agricultura Sustentável impulsiona as vendas para consumidores que fazem escolhas alimentares baseadas no uso ético da terra.
Perigo e promessa
Como todos os esforços de base local, o movimento Slow Food do Cerrado corre o risco de crescer rápido demais e alcançar mercados distantes de maneira desenfreada. Os recentes ganhos de popularidade impulsionaram a demanda pela castanha de baru, e os preços subiram. “Isso significa que estamos em uma encruzilhada”, diz Becker, do IEB. “Em 10 anos, as cooperativas ainda estarão aqui? Ou elas serão substituídas por plantações?”, questiona.
Ele adverte que até mesmo alimentos locais podem ser transformados em commodities. Os monocultores em grande escala geralmente se beneficiam de uma economia em escala, produzindo mais e fixando preços mais baixos do que os produtores tradicionais.
Outro problema: com a crescente demanda, “o preço pago a quem colhe não está crescendo proporcionalmente, mas a pressão [do agronegócio] sobre os ecossistemas está”, diz Podestá, coordenador do Slow Food Brasil.
As flutuações imprevisíveis do mercado também tornam os negócios difíceis para as empresas iniciantes. Segundo Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília, a pandemia da covid-19, por exemplo, diminuiu o consumo no último ano devido ao fechamento de mercados e escolas. Uma das maiores fontes de renda era o Programa de Aquisição de Alimentos, através do qual o governo federal compra de pequenos produtores os ingredientes para compor a merenda escolar.
Outras ameaças ao sistema alimentar sustentável de pequena escala no Brasil incluem o desmatamento contínuo e a conversão de terras para a agricultura industrial, o aumento da seca provocada pelas mudanças climáticas e a propagação de pragas de fazendas industriais.
Apesar de a monocultura estar bastante incorporada à economia brasileira, Isabel Figueiredo, do ISPN, sustenta que a agricultura em pequena escala e o cultivo de produtos orgânicos sustentáveis continuam sendo ferramentas importantes na proteção do Cerrado, bioma em constante ameaça de destruição.
Infelizmente, isso ainda não substitui medidas mais diretas e explícitas de proteção da terra. Em 2019, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado entregou ao governo uma petição com 570 mil assinaturas apoiando uma proposta de emenda que protegeria o Cerrado como patrimônio nacional. Esse projeto de lei foi apresentado pela primeira vez em 2010 e tem sido intensamente debatido desde então.
“Em muitos casos, o maior problema para os pequenos produtores é a posse da terra”, diz Figueiredo, “com os grileiros de terras a mando do agronegócio expulsando pessoas que trabalham no território há gerações, diversas vezes de forma violenta ou mesmo fatal”. Estrondo, megafazenda no oeste da Bahia que possui uma vasta rede de plantações de soja, milho e algodão, foi investigada por corrupção, supostamente pagando juízes, advogados e outros para legitimar terras roubadas.
O apoio governamental também é urgentemente necessário sob a forma de subsídios para pequenos produtores. De acordo com Becker, o alívio pode estar a caminho através de um bônus de 50 milhões de dólares para financiar projetos verdes e sustentáveis que seria concedido pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, apoiado por investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Especialistas advertem que se o Cerrado continuar nessa direção – permitindo a produção de commodities em escala industrial – a pobreza e a insegurança alimentar aumentarão nas comunidades, que dependem do bem-estar das terras nativas para obterem alimentos.
Imagem do banner: fruto da macaúba, comunidade Capão do Berto, Jaboticatubas, Minas Gerais. Foto: Daniel Félix Junquer.