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Como um peixe ameaçado pode nos proteger das mudanças climáticas

Como um peixe ameaçado pode nos proteger das mudanças climáticas
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O ano era 2020 e mais uma consequência dos extremos de temperatura causados pelas mudanças climáticas era constatada. Uma mortalidade de corais sem precedentes ocorria após o evento de estresse térmico mais severo registrado na Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais. A maior unidade de conservação federal costeira do Brasil foi estabelecida para proteger os cerca de 120 km de extensão da “grande barreira de corais brasileira”.

O índice de estresse térmico acumulado sobre os recifes da região, o DHW – escala adotada pela agência norte-americana Noaa, em que valores acima de 8 indicam risco de branqueamento severo, seguido de mortalidade – ficou acima de 10 por 43 dias. Foi o maior e mais duradouro evento de estresse térmico registrado desde que os valores de DHW foram determinados pela primeira vez, em 1985.

Dois anos após o evento, pesquisadores notaram, principalmente onde houve maior mortalidade, um aumento considerável na cobertura de algas, que competem com os corais nos recifes. “No entanto, não notamos diferenças significativas na abundância de peixes, mostrando que esses ambientes estão se recuperando do estresse”, relata a pesquisadora Gislaine Lima do Projeto Conservação Recifal.

Um dos responsáveis pela recuperação dos corais da APA é o budião-azul ou peixe-papagaio-de-bico-verde (Scarus trispinosus), um dos maiores e mais ameaçados peixes recifais do Atlântico. Por se alimentar de algas e ser um “construtor de recifes” ao realizar a chamada “bioerosão”, o budião é uma espécie-chave para promover a resiliência dos ambientes recifais.

Ecossistemas íntegros e funcionais, especialmente em áreas protegidas, são mais resistentes e se recuperam mais rápido das consequências dos eventos extremos, cada vez mais frequentes. Sabendo disso e para auxiliar as regiões costeiras na adaptação climática, a conservação e uso sustentável do budião-azul vem sendo incorporados em políticas públicas como medidas de Adaptação Baseada em Ecossistemas (AbE) que utilizam a biodiversidade e os serviços ambientais.

A AbE faz parte do conjunto de Soluções baseadas na Natureza, mencionadas no documento final da COP 27. Essa é uma estratégia que utiliza os ecossistemas funcionais como infraestrutura para fornecer serviços de enfrentamento aos desafios mais urgentes do nosso tempo – mudança do clima, segurança alimentar e hídrica, desastres naturais –, gerando soluções abrangentes com benefícios que atendem às agendas sociais, econômicas e ambientais.

A saudável relação entre o budião e os recifes de corais pode ser um trunfo para mitigar os efeitos das mudanças climáticas           Foto: Ronaldo Francini Filho

Um peixe para resgatar os corais

A bioerosão é um importante processo de reciclagem dos recifes. Durante a atividade alimentar, os budiões removem pedaços de corais, algas calcárias e outros organismos incrustantes, ao raspar com a mandíbula em forma de bico os esqueletos de cálcio dos corais. Na digestão, esses pedaços são processados, dando origem a um sedimento carbonático fino que se acumula nos recifes e em algumas praias de areias brancas, como nos Atóis. Os buracos e frestas abertos pela atividade alimentar dos budiões abrem novos espaços, que são colonizados por vários organismos e, assim, estes peixes “esculpem” os recifes de corais.

Estudos, principalmente no Caribe, têm mostrado que recifes com biomassa elevada de budiões, em muitos casos dentro de áreas marinhas protegidas, são capazes de resistir a alterações do habitat, mantendo comunidades marinhas mais saudáveis e com alta diversidade de outras espécies de peixes.

Os recifes de corais representam apenas 0,2% do leito marinho, porém hospedam 25% das espécies marinhas do planeta. Além disso, promovem uma série de serviços ecossistêmicos que nos auxiliam na mitigação e adaptação às mudanças do clima, como a proteção de costa contra erosão e tempestades; a produção de alimentos; a oferta de trabalhos locais e oportunidades de ócio.

Em todo o mundo, mais de 275 milhões de pessoas vivem nas imediações de recifes de corais (a menos de 30 km de recifes e a menos de 10 km da costa) e cerca de 850 milhões vivem a até 100 km deles, de acordo com a Reef Resilience Network. Ao formar barreiras naturais que protegem as costas próximas da erosão marinha, os recifes protegem habitações costeiras, terras agrícolas e praias em cerca de 150 mil km de costa em mais de cem países. As mudanças climáticas exercem forte influência nas regiões costeiras, e já se percebe que essas áreas vêm sofrendo grandes alterações.

As alterações no clima também afetam a estrutura da comunidade bentônica (organismos que vivem no fundo do mar) dos recifes de corais. Consequências como o aumento da temperatura e a acidificação dos oceanos contribuem para a mortalidade dos corais, reduzindo sua cobertura no recife. Esse fato altera o estado do recife de uma cobertura predominantemente coralínea para uma cobertura de algas. Como reflexo deste processo, a complexidade topográfica dos recifes diminui.

“Em primeira instância, espera-se que as espécies de peixes que têm os corais como habitat entrem em declínio, enquanto peixes herbívoros como os budiões, prosperam por um tempo, até que a dominância das algas seja muito grande e estes acabam por sucumbir também. Esse processo é conhecido como ‘mudança de fase’ e leva o recife a um estado menos produtivo”, explica Carlos Hackradt, coordenador do Projeto Budiões.

Pelas projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um aquecimento global de 1,5°C levará à morte de 70 a 90% dos corais tropicais do mundo. Já aquecemos 1°C e se chegarmos a 2°C o extermínio dos corais será de 99%. E para piorar a situação, estudos preveem que o aquecimento das águas fará com que peixes tropicais como o budião migrem para regiões mais frias ao norte e que as algas dominem os recifes tropicais em até 30 anos.

Com muitas algas e sem budiões será muito difícil restabelecer os recifes de corais, especialmente após eventos de branqueamento. Portanto, as ações de conservação e uso sustentável de espécies como o budião-azul representam abordagens que contribuem diretamente no enfrentamento das consequências das mudanças climáticas nos ambientes recifais.

O budião-azul e a sobrepesca

A influência das mudanças climáticas sobre as regiões costeiras devem impactar também a pesca, que é crítica para a economia e para a subsistência em vários locais do Brasil. Implementar uma gestão sustentável e adaptativa da pesca pode aumentar a capacidade das localidades em garantir a viabilidade das espécies de peixes e comunidades pesqueiras em longo prazo.

A sobrepesca é uma das principais ameaças à conservação dos budiões             Foto: Natália Roos

O budião-azul ocorre ao longo de quase toda a costa brasileira, mas a pesca excessiva vem reduzindo suas populações. A pesquisadora Natália Roos estudou a fundo o budião-azul e concluiu que ele possui características que o tornam mais vulnerável à sobrepesca em comparação a outros budiões. “As características incluem grande tamanho corporal, até 90 cm; crescimento lento; longevidade (um estudo mostrou que chegam aos 22 anos); maturação sexual tardia (aos 4 anos e 40 cm); e por ser uma espécie hermafrodita protogínica, ou seja, os indivíduos nascem fêmeas e após atingirem a maturação sexual, alguns tornam-se machos”, descreve.

Considerando estas características, Roos explica que a sobrepesca afeta a estrutura demográfica das populações por duas vias principais: a captura excessiva de indivíduos juvenis menores do que 40 cm, que nunca se reproduziram, e a captura excessiva de indivíduos muito grandes, que englobam principalmente os machos da população ou as fêmeas com a maior capacidade reprodutiva.

Indivíduos juvenis imaturos tendem a usar os recifes costeiros, enquanto os grandes e maduros são mais comuns em recifes offshore (fora da costa). Assim, a pesca artesanal foca principalmente nos juvenis por estarem próximos à costa e por utilizar redes de emalhe para a captura de cardumes. Enquanto a pesca esportiva, utilizando arpões, foca principalmente nos maiores indivíduos, os chamados “troféus”. Dessa maneira, os diferentes tipos de pesca acabam afetando as populações de budião-azul de maneira complementar.

A pressão de pesca, principalmente sobre indivíduos imaturos, afeta severamente a capacidade reprodutiva da espécie. Isso fez com que a espécie fosse avaliada como ameaçada de extinção no ano de 2014 e atualmente seja classificada como Em Perigo (EN) pela Portaria MMA nº 148/2022. Já houve, inclusive, extinções locais da espécie, como em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro.

A pesca de budiões juvenis, como o da foto, compromete a reprodução da espécie         Foto: Ronaldo Francini Filho

Pesquisadores já constataram que as duas maiores populações remanescentes de budiões-azuis, a do Banco dos Abrolhos (BA) e dos recifes litorâneos do Rio Grande do Norte, vêm sendo alvos de intensa sobrepesca.

No município de Rio do Fogo (RN), um dos principais locais de pesca do budião azul, são pescadas cerca de 9 toneladas por ano. A Área de Proteção Ambiental dos Recifes de Corais, criada em 2001 e gerida pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (Idema), conta com um Plano de Gestão dos Recursos Pesqueiros aprovado em 2007. Contudo, o plano não tem ações específicas para os budiões, e precisa ser atualizado. A APA abrange os municípios de Maxaranguape, Rio do Fogo e Touros.

Na região dos Abrolhos, onde estão os mais extensos recifes de corais do Brasil, são pescadas cerca de 24 toneladas do peixe por ano ou duas toneladas por mês. Isso fez com que sua população diminuísse cerca de 30% em 6 anos (2003-2008), com reduções de até 60% em algumas áreas.

Um estudo publicado em 2014 sobre as características da pesca do budião-azul no Banco dos Abrolhos concluiu que a pesca do peixe, que ocorre há mais de 40 anos na região, foi intensificada com a comercialização do filé de budião e com a redução de outras espécies alvo de pesca.

De acordo com Marília Previero, autora do estudo, a mortalidade por pesca entre 2010 e 2011 foi cerca de três vezes maior do que a mortalidade natural da espécie, o que é um indicador de sobrepesca. “O ideal é que a mortalidade por pesca fosse mais ou menos igual à mortalidade natural. Como é uma espécie que vive muito, então morrem naturalmente bem poucos indivíduos e aí a quantidade de pesca aceitável para que não haja sobrepesca é bem pequena”, explica.

Natália Roos estudou as populações nas duas áreas (Rio Grande do Norte e Abrolhos) e também defende que, para conservar a espécie, deve haver um adequado manejo pesqueiro. “Considerando sua importância ecológica e seu acentuado declínio populacional nas últimas décadas, o ideal seria que a captura do budião-azul fosse proibida. Por outro lado, entendo que muitos pescadores artesanais dependem dessa pescaria em determinadas épocas do ano, tanto no Rio Grande do Norte quanto no sul da Bahia. Por isso, acredito que o melhor caminho para unir a conservação e a demanda dos pescadores seria a implementação efetiva do manejo pesqueiro, na forma que propõe o Plano Nacional de Recuperação dos Budiões”, avalia Natália.

Planos para os budiões

A inclusão do budião-azul na Lista Nacional de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção – Peixes e Invertebrados Aquáticos (Portaria MMA 445/2014) e a proibição da sua pesca em 2014, embora sem fiscalização, gerou protestos por parte dos pescadores. Em 2015, a Confederação das Resex e dos Extrativistas Costeiros e Marinhos da Bahia (Confrem) repudiou a proibição alegando que nas Reservas Extrativistas (Resex) de Canavieiras, Corumbau e Cassurubá, 80% da renda familiar de cerca de 290 famílias provinha da pesca do budião-azul.

De fato, de acordo com o Projeto Budiões, cerca de meio bilhão de pessoas no mundo dependem dos peixes recifais como fonte de alimento, sendo que cada quilômetro quadrado de recifes saudáveis pode produzir até 15 toneladas de peixes por ano. Carlos Hackradt esclarece que a pesca de peixes recifais representa 11% das capturas e da aquicultura mundial, podendo chegar a 30% no caso do Triângulo de Corais do Pacífico, e que cerca de 6 milhões de pescadores dependem dos recifes para sobrevivência ou geração de renda.

Para tentar resolver o impasse entre a conservação e o uso do recurso pesqueiro, um grupo formado por pesquisadores nacionais e internacionais, especialistas em budiões e outros peixes herbívoros, juntamente com o ICMBio e a Conservação Internacional (CI) do Brasil elaboraram uma proposta para a recuperação da espécie a nível nacional, encaminhada para o governo. Sugeriu-se, por exemplo, que as pescarias só ocorressem dentro de Áreas Marinhas Protegidas de uso sustentável. A medida protegeria a atividade de pesca tradicional de pequena escala, que são os pescadores dentro das Resex.

Uma das estratégias para o manejo sustentável de budião é permitir apenas a pesca de arpão, feita em mergulho de apneia       Foto: Ananda Silva

Em abril de 2018, o MMA publicou a Portaria nº 129, que reconhece como passível de exploração, estudo ou pesquisa as espécies de budião, incluindo o budião-azul (Scarus trispinosus), e estabeleceu suas respectivas condições. Em novembro do mesmo ano, foi publicada a Portaria Interministerial nº 59-B, que definiu regras para o uso sustentável e recuperação dos estoques do budião-azul, instituindo o Plano Nacional de Recuperação dos Budiões.

Dentre outras coisas, o plano propõe o arpão como o único petrecho de pesca permitido, um limite de tamanho de captura entre 39 e 63 cm, a proibição da pesca industrial e recreativa, e que a pesca só seria permitida em zonas de uso múltiplo de áreas marinhas protegidas, e por pescadores autorizados.

Para avaliar o andamento do Plano de Recuperação Nacional e propor aperfeiçoamentos, foi instituído um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) pela Portaria Interministerial MMA/MAPA nº 218/2021. O GTI teria o prazo de um ano para conclusão dos trabalhos, a contar da data da primeira reunião, em 19 de outubro de 2021. Contudo, o Subgrupo de Trabalho dos Budiões não chegou a se reunir. Questionado pela reportagem, o MMA não se manifestou.

Diante das indefinições em âmbito nacional, diversas ações foram realizadas entre MMA, ICMBio, pescadores e pesquisadores para que se chegasse a um acordo de quais medidas de controle da pesca seriam de fato aplicadas dentro de cada unidade de conservação (UC). Como por exemplo a proibição de filetagem no barco, para não se perder a medida e o peso do peixe.

Tais ações resultaram na elaboração de Planos de Gestão Local (PGLs), tendo como base estudos prévios nas UCs que demonstravam que havia estoques pesqueiros que permitiam o uso sustentável das espécies, além da importância socioeconômica desses pescados para pescadores das Resex. O PGL é uma estratégia de manejo para a conservação inspirada no manejo de pirarucu da Amazônia, referência no Brasil e no mundo.

Na Resex Marinha do Corumbau, os acordos ou regras foram construídos ao longo de 2018 durante reuniões e oficinas com os pescadores da reserva, bolsistas de pesquisa e técnicos do ICMBio, resultando num Plano de Gestão Local elaborado em 2019 e publicado em maio de 2021 pela Portaria ICMBio nº 284/2021.

Paula Pinheiro, analista ambiental do ICMBio, esclarece que o PGL da Resex Corumbau está estruturado nos eixos de identificação e autorização dos pescadores; monitoramento das capturas e esforço de pesca; controle e estabelecimento de diretrizes de fiscalização; medidas de ordenamento e avaliação da efetividade das medidas. Ainda, estabelece regras sobre quem pode pescar, como, quando, o quanto e onde. “Ações estruturantes de implementação vêm sendo realizadas desde o processo de construção do PGL, como o cadastro de pescadores e embarcações e mapeamento dos pesqueiros”, acrescenta.

Somente os beneficiários da Resex cadastrados pelo ICMBio podem pescar, por meio do mergulho de apneia, durante o dia, com uso de espingarda ou arbalete. Eles devem ainda realizar o automonitoramento da pesca, no qual registram e informam ao ICMBio os dados da pescaria (espécies capturadas, número de indivíduos, esforço de pesca, etc.) com o auxílio de monitores. Isso permite a interpretação conjunta dos resultados do monitoramento com os pescadores, a avaliação da efetividade das medidas de ordenamento e os ajustes necessários (manejo adaptativo) à conservação do budião.

“Além do limite de quantidade de indivíduos por dia por pescador, restrições de tamanho dos peixes e exclusão da pesca em áreas estabelecidas no zoneamento do Plano de Manejo da Resex, a sazonalidade e a limitação da pesca também contribuem para a sustentabilidade, já que a atividade ocorre praticamente entre os meses de novembro e abril, em época de águas mais claras para o mergulho de apneia, e, geralmente, sem pescas diárias com a captura de toda a cota estabelecida no PGL”, informa Pinheiro.

Alan Machado, 37 anos, pescador como seu pai desde os 15 anos, “nascido e criado” na praia de Barra de Caravelas, conta como foi a construção do PGL na Resex Cassurubá (Portaria ICMBio nº 285/2021), em Caravelas (BA): “A construção do plano foi muito gratificante porque foi coletiva e participativa. Teve o dedo de todo mundo, inclusive das comunidades pesqueiras. Participamos desde a construção do plano de recuperação, depois da 445 (da proibição da pesca do budião), até o PGL, que abarca muita coisa dos planos de manejo e de recuperação do budião”.

Apesar das regras claras e da construção participativa, ainda há certa dificuldade na fiscalização e implementação dos PGLs nas Resex da Bahia. Machado, que é sócio-fundador e atualmente está no segundo mandato como presidente da colônia de pescadores de Caravelas – Z25, explicou que os pescadores estão esperando “ver para acontecer”.

“As regras já foram discutidas, os pescadores já sabem de cor. Algumas não vêm sendo respeitadas, como a questão da redagem nos recifes quando a maré está baixa. Mesmo com o PGL, o plano de manejo e o plano de recuperação do budião dizendo que só pode ser pescado com mergulho de apnéia durante o dia, com arbalete ou arma pneumática, a redagem ainda vem sendo feita. Há também a questão do budião ser desembarcado ainda como filé e não inteiro, devido a essa falta de colocar as regras em prática e ter fiscalização”, aponta.

Apesar dessas questões, Machado relata que muitas mudanças positivas vêm acontecendo, como a emissão das licenças para os pescadores que participaram do automonitoramento. “Isso fez com que outros pescadores procurassem se legalizar”, conta.

“Também estamos discutindo com alguns parceiros a questão de agregar valor, para ver se o budião tem um valor que possa ser rentável, para o pescador entender que existe o valor não só para a conservação, mas para valorizar sua própria atividade”, diz Machado.

A pesca restrita poderia aumentar a população de peixes e até a receita dos pescadores, mas é necessário que haja uma fiscalização adequada. Para Natália Roos, além da fiscalização efetiva, deve haver a conscientização da população geral. “As pessoas precisam conhecer o budião-azul, a sua importância e vulnerabilidade. Eu acredito que a implementação de políticas públicas que beneficiem os pescadores artesanais e os desincentivem a capturar espécies ameaçadas também seria fundamental para estas questões”.

Em algumas Áreas de Proteção Ambiental (APAs), outra categoria de UCs de uso sustentável, ações para conservação e o uso dos recursos pesqueiros também vêm sendo realizadas. Na APA Costa dos Corais (APACC), um estudo recente publicado na revista Nature apontou zonas prioritárias para a proteção do budião-azul e diretrizes para delinear e refinar a gestão da área protegida.

De acordo com Gislaine Lima, uma das autoras do estudo, os delineamentos corroboram com o zoneamento da UC. “O estudo mostra que o budião-azul possui populações mais expressivas no litoral de Maragogi/Japaratinga e Paripueira/Maceió. Também foi comprovada a eficácia do zoneamento na APACC, onde observamos que as áreas prioritárias para a conservação de cinco espécies de budiões são exatamente aquelas apontadas pelos stakeholders no zoneamento, destacando a importância do conhecimento empírico no processo de criação dessas áreas e no plano de manejo dessas UCs”.

Atualmente, a APACC está trabalhando na regulamentação da pesca de três espécies de budiões, incluindo o budião-azul. O plano de manejo incluirá restrições para sua captura, que só será permitida durante o dia, para indivíduos maiores de 40 cm e pesando mais de 3 kg. Uma proibição de temporada também será recomendada, durante fevereiro-março e agosto-setembro (picos de desova). Por último, o peixe poderá ser desembarcado eviscerado, mas nunca em filé, pois isso dificulta a identificação durante o monitoramento.

Fora das UCs de uso sustentável, há estratégias possíveis para promover a conservação e manejo do budião-azul. O Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Ambientes Coralíneos – PAN Corais, por exemplo, levou em consideração espécies incluídas nas listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção, como o budião-azul, e o incluiu como uma das espécies-alvo. Os budiões também vêm sendo avaliados pelo ICMBio quanto ao seu status populacional em oficinas de validação que contam com vários especialistas.

Em Porto Seguro (BA), no Plano de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA) do município – o primeiro a incorporar medidas de adaptação baseadas em ecossistemas do país, em 2014 – são previstos “acordos de pesca” para garantir a sustentabilidade dos territórios pesqueiros e gerir a pesca do budião ao longo da Resex Corumbau.

Segundo Marianna Poli, representante da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Seguro que trabalhou na elaboração do PMMA, a leitura comunitária participativa e o envolvimento de ONGs como CI e Gambá tornaram sua construção muito bem feita, mas o plano precisa ser atualizado e acionado. “Como qualquer instrução técnica, precisa de novo mapeamento e construção, com habilitação de convênio público. A grande dificuldade do município de Porto Seguro é a gestão com recursos próprios. Por isso, estamos tentando habilitar as pastas de planejamento para gerir produtos e parcerias como objetos de convênio”, explica.

Ainda na Bahia, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) vêm conduzindo a construção de treze Planos de Recuperação de espécies ameaçadas de extinção de importância socioeconômica, dentre elas o budião-azul, financiados pelo Projeto TerraMar em parceria com o MMA.

A partir destes Planos de Recuperação estaduais, as comunidades pesqueiras terão limites estabelecidos de áreas liberadas para pesca, período, quantidade e ainda técnicas de uso sustentável autorizadas pelos órgãos ambientais, além de poderem apontar a necessidade de controle de outras atividades e empreendimentos prejudiciais às espécies ameaçadas.

Um grupo de budiões-azuis jovens em coral no Parracho Rio do Fogo              Foto: Natália Roos

O budião-azul como estratégia de adaptação

É perceptível que, cada vez mais, cientistas e formuladores de políticas públicas estão reconhecendo a importância e a viabilidade das estratégias de Adaptação baseada em Ecossistemas (AbE) já que elas são, muitas vezes, as opções mais viáveis para os países em desenvolvimento como o Brasil, que abrigam grande parte das áreas naturais menos impactadas e mais resilientes.

A AbE une as temáticas de biodiversidade e clima, e dos serviços ecossistêmicos como parte de uma estratégia de adaptação climática, gerando benefícios econômicos, sociais, ambientais e culturais. A melhor forma de implementá-las é por meio do gerenciamento dos recursos naturais baseados em comunidades, como vem ocorrendo nos territórios pesqueiros citados, gerando efeitos sobre a segurança alimentar e a promovendo uma visão integrada destes territórios.

Para Carlos Hackradt, coordenador do Projeto Budiões, as ações de conservação e uso sustentável de um peixe tão emblemático como o budião-azul, seja dentro ou fora de UCs, representam abordagens de conservação ecossistêmica que contribuem diretamente no enfrentamento dos impactos das mudanças climáticas sobre os ambientes recifais e as regiões costeiras. “Espera-se que essas políticas públicas favoreçam o uso sustentável dos estoques de budiões e contribuam para a conservação da espécie”, aponta o pesquisador.

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Trajano Xavier

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