De agrotóxicos a atropelamentos: os riscos à existência do tamanduá-bandeira no Cerrado
Não é fácil ser tamanduá-bandeira no Brasil. Ameaçada de extinção na natureza, a espécie está enfrentando uma série de riscos à sua existência, como desmatamento do Cerrado, atropelamentos em massa em estradas e rodovias e até casos de intoxicação por um dos agrotóxicos mais utilizados em plantações de commodities, como soja e milho.
Essa é a constatação de veterinário e biólogos que há anos pesquisam o animal e atuam na conservação do mamífero, espécie nativa das Américas e um dos símbolos da rica fauna do Cerrado brasileiro.
Não há dados oficiais sobre a população atual de tamanduás, mas um relatório da International Union for Nature Conservation (IUCN) apontou que ela diminuiu em 30% entre 2003 e 2013 – esse número, último disponível, é apenas uma estimativa por conta da dificuldade de calcular a quantidade de animais que existem na natureza.
Além do desmatamento do principal habitat, uma das causas apontadas como explicação dessa queda são os acidentes com veículos em rodovias de Estados como o Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.
Ou seja, os tamanduás estão sendo atropelados em um ritmo tão acelerado que isso está atrapalhando a reprodução da espécie.
Entre 2017 e 2020, pesquisadores do projeto Bandeiras e Rodovias, do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), monitoraram 14% das rodovias asfaltadas do Mato Grosso do Sul.
No período, encontraram 761 carcaças de tamanduás. “Mas esse número é bastante subestimado”, aponta Erica Naomi Saito, bióloga e especialista em ecologia de transportes do projeto.
“Ele só se refere a uma pequena parte das rodovias do Estado e a apenas tamanduás encontrados na pista ou no entorno. Muitos se arrastam e morrem em outros locais, ou são comidos por outros animais antes dos pesquisadores chegarem.”
O estudo estimou que os acidentes reduzem em 50% a taxa de crescimento da população da espécie, sendo uma das principais ameaças ao animal no Mato Grosso do Sul.
Embora o foco fosse o tamanduá, milhares de carcaças de outros bichos típicos do Cerrado e do Pantanal foram encontradas nas estradas, como antas, capivaras e onças.
Nos três anos do monitoramento, foram registrados 12,4 mil animais mortos em acidentes – 40% deles eram de grande porte.
Segundo especialistas em conservação, como em várias regiões do Estado sobreviveram apenas pequenos fragmentos de vegetação preservada, os animais costumam atravessar as estradas em busca de comida e outros recursos.
No caso do tamanduá, que se movimenta lentamente, tem hábitos noturnos e enxerga mal, os acidentes se tornaram constantes.
“Esse é um problema crítico e crônico. E não só para a fauna, mas também para a segurança nas estradas. Há casos de famílias que morreram em acidentes como esses. É um problema que afeta direta ou indiretamente cada um de nós que usa as rodovias, que têm familiares, amigos ou funcionários usando essas estradas e que diariamente estão expostos ao risco”, explica Saito.
Para a bióloga, se políticas públicas não forem implementadas para diminuir o número de acidentes, a tendência é que a situação fique pior, para humanos e animais.
“Por causa do agronegócio, o Mato Grosso do Sul está expandindo sua malha viária nos últimos anos. O que está acontecendo é uma tragédia, para humanos e animais. Todos temos direito a estradas mais seguras”, diz.
Em uma parceria com o governo do MS, o projeto desenvolveu um manual com ideias de políticas públicas que poderiam diminuir os acidentes nas 142 rodovias estaduais, que totalizam 13,3 mil quilômetros – 8,5 mil deles ainda não pavimentados.
Entre as propostas estão o cercamento de rodovias próximas de áreas naturais, melhor sinalização, redutores de velocidade e até “viadutos de fauna” (estruturas com vegetação quem atravessam por cima das pistas para que os animais tenham por onde passar com segurança).
A BBC News Brasil procurou o governo do MS na manhã da última sexta-feira para comentar o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Filhotes órfãos
O cenário é parecido no Triângulo Mineiro, oeste de Minas Gerais. A região com 66 municípios, uma das mais ricas do Estado, passou por forte expansão de plantações de commodities nas últimas décadas.
A onda de mortes de animais silvestres nas estradas motivou a criação do TamanduASAS, uma parceria do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF) com o Ibama, universidades, ONGs e empresários.
Nos últimos sete anos, biólogos e veterinários do projeto estão recolhendo e tratando os filhotes de tamanduá que sobrevivem aos atropelamentos.
“A mãe carrega um único filhote nas costas por vários meses. Alguns conseguem escapar dos acidentes, mas, como eles dependem muito da presença materna nos primeiros meses de vida, acabam morrendo depois”, explica a veterinária Juliana Magnino, analista ambiental do IEF e uma das coordenadoras do projeto.
Magnino conta que recebe, em média, 16 filhotes órfãos anualmente, 90% deles envolvidos em acidentes.
Alguns chegam machucados e com menos de um quilo. Um tamanduá-bandeira adulto pode pesar até 45, e pode chegar a 2,4 metros de comprimento.
A partir daí, os bichos passam por um processo de recuperação e adaptação ao cativeiro, com exames, mamadeiras e até travesseiros usados como substitutos do colo materno.
Eles são novamente inseridos na natureza quando já estão autossuficientes, com cerca de um ano e meio.
“Nós apanhamos muito até desenvolver um método de recuperação e readaptação à vida livre na natureza. Foi preciso entender o comportamento deles. O que fazemos é dar uma segunda chance de vida”, diz a veterinária.
Porém, a vida livre de um tamanduá-bandeira é cheia de desafios em uma região ocupada por fazendas de produção agropecuária.
Depois da recuperação, eles são soltos em Reservas Particular de Patrimônio Natural (RPPN), que são áreas privadas de preservação do Cerrado, normalmente mantidas por empresários.
Esses pequenos fragmentos de vegetação nativa são vizinhos de fazendas de produção de commodities.
E os animais obviamente não respeitam os limites entre propriedades quando estão procurando alimento – um tamanduá come por volta de 10 mil formigas por dia, além de milhares de cupins.
Por alguns meses, os cientistas do TamanduASAS monitoram os tamanduás soltos por meio de GPS. E isso ajudou a entender outros riscos aos quais a espécie está atualmente submetida.
“A gente percebeu que alguns dos nossos filhotes depois morriam por diversos problemas, como doenças típicas de cachorros e gatos, caçados por cães que vivem nas fazendas e até por afogamento em uma piscina abandonada”, explica.
No ano passado, os biólogos do projeto encontraram um tamanduá morto em uma fazenda de plantação de soja em Uberlândia.
Ao lado do corpo, “havia galões de agrotóxicos vazios que tinham sido descartados indevidamente”, segundo um relato dos pesquisadores publicado pela Abravas (Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens).
No mesmo ano, outro animal monitorado foi encontrado morto na região.
A biópsia constatou que os dois se intoxicaram com organofosforado, um dos agrotóxicos mais utilizados em lavouras do Brasil.
Ainda não se sabe como os tamanduás se intoxicaram com o pesticida, mas, segundo Juliana Magnino, eles podem ter comido algo contaminado com o pesticida.
“Ou eles podem ter aspirado terra contaminada. Quando eles procuram alimentos, fuçam, cheiram tudo, e acabam ingerindo outras coisas. Eles podem ter ingerido essa terra com organofosforados”, diz.
Para Fábio de Salles Meirelles Filho, presidente da comarca de Minas Gerais da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja-MG), a morte dos tamanduás pode ter sido um acidente.
“O organofosforado não é utilizado para cupins, e sim para lagartos. Eu nunca tinha ouvido falar de tamanduás morrendo por causa disso. Então, com certeza foi um acidente, ou um erro no uso do produto”, afirma.
Os dois tamanduás, que haviam sido resgatados da estrada e retornado à natureza, se chamavam Cláudio e Larry.
Desmatamento do Cerrado
Outro fator apontado como causa do declínio da espécie é o desmatamento do Cerrado, principal habitat do animal, além de ser considerada a savana mais biodiversa do mundo, com 14 mil espécies de plantas.
Com a perda de espaço, vegetação e biodiversidade, o tamanduá tem menos recursos para se alimentar e se reproduzir. Também há relatos de mortes em queimadas.
Em 2022, o desmatamento do Cerrado cresceu 20% em relação ao ano anterior, segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado, uma ferramenta desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parceria com a Universidade Federal de Goiás e com o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no país.
No total, foram perdidos 815,5 mil hectares de vegetação nativa no ano passado.
De acordo com o MapBiomas, 45,4% do Cerrado já foi destruído para dar lugar à agropecuária, principalmente o cultivo de soja e milho.
Já Meirelles Filho, da Aprosoja-MG, afirma que o desmatamento ilegal é “combatido e denunciado” pela entidade. “Nós, como produtores, respeitamos o Código Florestal, que permite o desmatamento de 50% da área (particular) e a preservação do restante. Se você abrir mais do que isso você responde criminalmente”, diz.
Segundo ele, essas áreas preservadas legalmente em Minas Gerais estão ajudando a conservar as espécies típicas do Cerrado.
“Temos visto nas nossas fazendas um aumento do número de capivaras, de codornas, lobos-guarás e tamanduás. Agora, além do atropelamento, um dos maiores problemas para a fauna é o javali, que se espalhou pelo Brasil e hoje é o predador de várias espécies, inclusive onças”, diz.
Desde os anos 1980, os javalis se tornaram um problema para a biodiversidade, se reproduzindo rapidamente e invadindo áreas naturais para se alimentar de diversas espécies – hoje, o javali é único animal cuja caça é permitida no Brasil. Porém, não há dados científicos robustos sobre como eles afetam a população de tamanduás.
Boa notícia
Apesar do cenário desanimador, nem todas as notícias são ruins para a população de tamanduás-bandeira.
No final de dezembro do ano passado, um dos animais resgatados pelo TamanduASAS em Minas Gerais reapareceu meses depois de ser solta na natureza.
Heather, que ficou órfã depois de sua mãe ser atropelada, chegou ao projeto em julho de 2020. Tinha apenas dois quilos, e poucos meses de vida. Dois anos depois, foi libertada em uma reserva particular.
“Ela nem estava mais sendo monitorada. Mas um dia ela voltou para a área do projeto, e estava com um filhote nas costas. Foi nosso primeiro caso de reprodução. É nossa gota de esperança”, diz a veterinária Juliana Magnino.