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Detetives da floresta, jaguatiricas correm risco de extinção no sul do Brasil

Detetives da floresta, jaguatiricas correm risco de extinção no sul do Brasil
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Bastou a então primeira-dama dos Estados Unidos aparecer usando um casaco de pele de leopardo, no início dos anos 1960, para animais com pelagem semelhante entrarem na mira dos caçadores. Os efeitos do figurino de Jacqueline Kennedy foram especialmente devastadores para a jaguatirica (Leopardus pardalis), que se tornou o felino mais explorado pelo mercado internacional de peles entre os anos 60 e 70.

O animal, porém, conseguiu não apenas sobreviver à fúria da indústria da moda como recompôs sua população ao longo de uma vasta área de ocupação, que vai desde o sul dos Estados Unidos até o sul do Brasil — atualmente, a espécie é considerada de menor preocupação de conservação em nível global.

Segundo os especialistas, parte dessa capacidade de sobrevivência se deve às características únicas deste animal. Pesando até 16 quilos e medindo no máximo um metro de comprimento, a jaguatirica está no meio do caminho entre os grandes felinos, como a onça-pintada (Panthera onca), e seus parentes menores, como o gato-do-mato (Leopardus tigrinus) e o gato-maracajá (Leopardus wiedii) – um porte intermediário que lhe permite reinar soberana em áreas de floresta menores, pequenas demais para os grandes caçadores.

“A jaguatirica é a rainha da Mata Atlântica”, afirma Fernando Lima, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro e coordenador do projeto Felinos da Cantareira, que atua nos estados de São Paulo e Minas Gerais. “Ela tem um tamanho que faz com que ela consiga se destacar, se tornar um predador dominante em fragmentos florestais menores onde as onças estão ausentes”, explica o pesquisador, que também coordena o Plano de Ação Nacional para Conservação de Pequenos Felinos do governo federal.

Apesar de estar fora da lista de espécies ameaçadas mundialmente, no Rio Grande do Sul a jaguatirica corre risco de extinção. Imagem cedida pelo BiMa-Lab, Bird and Mammal Evolution, Systematics and Ecology Lab, da UFRGS

Mas no estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, as jaguatiricas seguem em risco de extinção. Desta vez, a ameaça não são os comerciantes de pele, mas a perda de habitat em uma região que já está nos limites de sua área de ocupação. “Como já é o extremo da distribuição [da jaguatirica], tem menos recursos e menos área, então acaba também reduzindo o número de indivíduos”, explica Gisele Jardim Bolze, que estudou a espécie no mestrado de Biologia Animal na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Altamente dependentes da floresta — onde conseguem se camuflar e caçar com facilidade —, no sul do Brasil, estes animais se veem encurralados entre o avanço da soja e os campos naturais do bioma Pampa, menos adequados ao seu modo de vida. Restam à jaguatirica os poucos fragmentos de mata restantes no Rio Grande do Sul, que, segundo o governo do estado, tem menos de 8% do território coberto pela Mata Atlântica.

O mais importante destes refúgios é o Parque Estadual do Turvo, localizado no noroeste do Estado, na fronteira com a Argentina. Cercado de lavouras, a unidade de conservação de 17.500 hectares virou uma espécie de paraíso das jaguatiricas. “É uma das poucas populações saudáveis de jaguatirica do estado”, diz Flávia Tirelli, professora da UFRGS e especialista em felinos silvestres de pequeno porte.

A importância do parque para a espécie foi comprovada pelo trabalho de Bolze, que usou câmeras escondidas para mapear a presença dos animais em diferentes regiões do estado. Foi possível registrar a presença da espécie em apenas três das seis regiões analisadas, e o parque do Turvo teve o maior número de registros. “Aquela floresta é muito especial. Os animais estão realmente refugiados ali”, conta a pesquisadora.

O Turvo foi criado em 1947, sendo a unidade de conservação mais antiga do Rio Grande do Sul. O parque, que é a maior área de floresta preservada do estado e o último reduto das onças-pintadas (Panthera onca) em solo gaúcho, também abriga outros animais ameaçados de extinção no estado, como a suçuarana (Puma concolor), o cateto (Pecari tajacu), a anta (Tapirus terrestris), a harpia (Harpia harpyja) e a jacutinga (Aburria jacutinga).

Detetives da paisagem

Registros de jaguatiricas também foram encontrados em outros remanescentes de Mata Atlântica do Rio Grande do Sul, especialmente na serra gaúcha, como mostra outro artigo publicado em 2021. Segundo Tirelli, uma das autoras da pesquisa, tudo indica que naquela parte do estado os animais encontram maneiras de transitar entre os diversos fragmentos de mata restantes. “Tu tem poucos registros de jaguatirica, mas eles estão espalhados por aquela região”, afirma a pesquisadora.

Essa capacidade de ocupar pequenas áreas de floresta rendeu à jaguatirica o apelido de “detetive da paisagem”, e faz da espécie um ótimo indicador para a criação de corredores verdes ou ecológicos, como são chamadas as ligações entre diferentes áreas verdes. “A gente tinha câmeras nas áreas de restauração e via que as jaguatiricas estavam entre as primeiras espécies a começar a usar os corredores”, conta Lima, que trabalhou com o monitoramento de jaguatiricas no Pontal do Paranapanema, no extremo oeste de São Paulo, e na bacia do Rio Paraná. “Elas vão indicar os melhores locais para fazer a conexão”.

No entorno do Parque Estadual do Turvo, no entanto, o agronegócio avançou tanto que é possível que estes animais estejam isolados. “A densidade de jaguatiricas no Turvo é maior, mas eles não têm para onde ir. Elas estão todas acumuladas ali”, afirma Tirelli. Se confirmado, esse isolamento teria um preço. Por um lado, a variabilidade genética diminui, deixando os animais mais expostos a doenças. De outro, o território começa a se tornar pequeno demais para tantos felinos.

O Rio Uruguai – onde fica o famoso Salto do Yucumã – faz a divisa entre o Parque Estadual do Turvo e as matas da vizinha Argentina; se as jaguatiricas forem capazes de transpor o rio, como acreditam alguns pesquisadores, é possível que seu isolamento não seja tão grande. Foto: Arlei antunes, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Segundo Lima, cada grupo de jaguatiricas costuma ter um macho dominante e duas ou três fêmeas, e ocupa uma área entre 1.000 e 2.000 hectares. À medida que o filhote macho vai crescendo, ele entra em confronto com o pai, em um conflito que só termina com a expulsão de um dos dois do território.

“Muitos animais que a gente encontra atropelados são machos jovens que estavam buscando estabelecer seu território. O ideal é que eles tenham pontos onde consigam sair e se dispersar dentro da paisagem de forma segura”, explica o pesquisador.

Uma vez perdidas nas áreas rurais, também é muito comum que jaguatiricas acabem invadindo galinheiros e matando as aves para se alimentar, o que muitas vezes resulta no assassinato dos felinos por parte de granjeiros enfurecidos. “Às vezes elas ficam sem comida por causa da perda do habitat, e quando os galinheiros têm buracos elas conseguem pular e pegar as galinhas”, explica Tirelli.

Segundo os pesquisadores, as jaguatiricas do Turvo teriam uma chance de sair do isolamento através de uma perigosa travessia do Rio Uruguai — onde fica o famoso Salto do Yucumã, uma fenda de 1.800 metros de extensão onde se forma a mais extensa queda d’água longitudinal do mundo. Do outro lado, eles chegariam na Reserva da Biosfera de Yabotí, uma vasta área verde da Argentina que também se conecta ao Parque Nacional do Iguaçu, novamente em território brasileiro.

Diversas ONGs trabalham para criar um corredor ecológico ao longo do Rio Paraná, ligando áreas verdes no Brasil, Argentina e Paraguai. Imagem: ONG Curicaca

Registros fotográficos não deixam dúvidas de que as onças são capazes de fazer essa travessia. No caso das jaguatirica, no entanto, a capacidade de o bicho chegar vivo ao outro lado segue no campo das especulações. “Não temos a menor noção se teria chance de elas cruzarem o rio. Ali a correnteza é muito forte. Mesmo a onça toma um solavanco, parece que ela está em uma máquina de lavar”, diz Tirelli.

Já Alexandre Krob, coordenador técnico da ONG Curicaca, é mais otimista quanto às chances da jaguatirica. “Não temos certeza de que elas são capazes de cruzar, nem de que não são capazes”, ele diz, lembrando que em certas épocas o rio fica mais baixo e com pontos mais fáceis de travessia.

Junto a parceiros como a WWF, a ONG Curicaca trabalha na criação de um vasto corredor ecológico ao longo do Rio Paraná, ligando áreas preservadas do Brasil, Argentina e Paraguai. Um trabalho de longo prazo, mas que aumentaria as chances de sobrevivência de espécies como a jaguatirica. “Nosso objetivo é concluir o projeto em cem anos. Não trabalhamos com a perspectiva de corredor ecológico em curto prazo”, diz Krob.

Fonte: Mongabay

 Foto banner: Jaguatirica no Pantanal mato-grossense. Foto: Martha de Jong-Lantink, CC BY-NC-ND 2.0, via Flickr

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Trajano Xavier

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