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Em busca das preguiças-de-coleira na Mata Atlântica nordestina

Em busca das preguiças-de-coleira na Mata Atlântica nordestina
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Depois de ser sedada, ter suas medidas, peso e sangue coletados, a primeira preguiça-de-coleira capturada para pesquisa em Sergipe retorna ao seu habitat na Mata Atlântica.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI

Binóculos, câmeras fotográficas e olhar afiado. Para encontrar as preguiças-de-coleira (Bradypus torquatus Illiger), uma equipe de sete pesquisadores – entre biólogos, veterinários e um escalador – saiu de Ilhéus, na Bahia, em direção ao sul do estado de Sergipe. Durante dez dias passaram boa parte do tempo em campo, olhando para o alto, na tentativa de avistar os animais nas copas das árvores.

“Não é tão fácil, demora um pouco para achar. Só no sexto dia de campo encontramos a primeira preguiça-de-coleira”, conta a bióloga Beatris Rosa, responsável pelo Projeto Preguiça-de-coleira, do Instituto Tamanduá.

A expedição tinha como objetivo levantar o limite e o status das áreas de ocorrência da espécie e checar se a população de animais de Sergipe é geneticamente parecida com as da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

“Sabíamos que [a ocorrência da espécie] vai até determinado ponto, mas não como estavam essas áreas e esses animais”, explica a médica-veterinária Flávia Regina Miranda, pesquisadora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e presidente do Instituto Tamanduá. “Se vamos trabalhar planos de conservação para uma determinada espécie, é preciso saber se realmente é uma unidade evolutiva significativa, ou seja, se é a mesma espécie.”

A Mata do Castro, no sul de Sergipe, é um dos últimos fragmentos preservados de Mata Atlântica do estado.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI
Foto dos pesquisadores procurando por preguiças
Foto dos pesquisadores tentando achar um sinal de rádio

Capturar preguiças é especialmente desafiador. Pesquisadores passam horas olhando para cima em busca dos animais, que costumam se esconder entre as folhagens na copa das árvores.

Abaixo:

Beatris Rosa e Alexandre Martins buscam por sinais de telemetria de rádios-mochilas instaladas em preguiças-de-coleira que vivem em fragmentos de Mata Atlântica na Praia do Forte, Bahia.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI
Foto de um escalador em uma árvore capturando uma preguiça

O escalador Clauzio Ramos sobe uma árvore para capturar uma preguiça em Sergipe, em outubro de 2021. A atividade requer experiência tanto em escalada quanto em manejo de animais selvagens.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI

Com o levantamento genético, os pesquisadores têm mais ferramentas para definir como fazer o manejo das populações de preguiças.  “Se há genética diferente, temos que trabalhar com manejos populacionais específicos, não dá para colocar todo mundo junto porque, nesse caso, são espécies que já estão evoluindo separadamente”, diz Miranda. Assim, os pesquisadores saberão se é preciso fazer corredores ecológicos ou se podem, por exemplo, pegar um animal resgatado na Bahia e reintroduzi-lo no Espírito Santo.

História dos xenartros

Apesar do nome, o Instituto Tamanduá trabalha pela conservação de todos os xenartros, grupo de mamíferos placentários que engloba, além das preguiças e tamanduás, os tatus. Nativos das Américas, os xenartros surgiram no período Terciário, há mais de 60 milhões de anos.

Endêmica da Mata Atlântica, e totalmente brasileira, a preguiça-de-coleira corre risco de extinção. Simpática e de hábitos solitários, ela está classificada como vulnerável na lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Elas estão distribuídas em áreas costeiras do Sudeste e Nordeste, do norte do estado do Rio de Janeiro ao sul de Sergipe.

Mas, apesar de extensa, a área total de ocupação da espécie é inferior a 1 mil km2 e está dividida em regiões severamente fragmentadas. Estima-se que as populações estejam reduzindo drasticamente, sobretudo por perda e fragmentação de habitats causados pela ação humana.

Da esquerda para a direita, as pesquisadoras Beatris Rosa, Flavia Miranda, Paloma Marques e Suellen Ferreira checam peso e medidas de uma preguiça capturada e sedada em reserva de Sergipe.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI
Foto de uma preguiça anestesiada sendo examinada
Foto de uma pesquisadora segurando e analisando um carrapato

Anestesiada, preguiça-de-coleira tem seus batimentos cardíacos aferidos.

Abaixo:

Flavia Miranda segura um enorme carrapato coletado na preguiça-de-coleira. Uma das atividades da equipe é avaliar a saúde dos animais capturados.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI

A oportunidade de criar um projeto específico de estudos com a espécie surgiu de uma compensação ambiental prevista na construção da rodovia estadual BA-099, que liga o município de Lauro de Freitas ao litoral norte da Bahia. O Projeto Preguiças-de-coleira começou em março de 2020, na reserva Sapiranga, na Mata de São João, litoral norte da Bahia. Ali, um total de 37 indivíduos já foram capturados para coleta de amostras de material biológico e análises genéticas. Alguns deles são monitorados por rádio-mochila, um dispositivo instalado nas costas do animal que fornece dados espaciais como área de vida e deslocamento.

Em 2004, alguns pesquisadores consideravam o animal extinto no sul de Sergipe. Mas há registros esparsos da espécie na literatura científica – um de 2004 e outros dois entre 2008 e 2009, feitos casualmente na região de Itaporanga d’Ajuda durante uma viagem a campo para estudos com primatas.

A expedição ao sul de Sergipe foi a primeira a realizar coleta de material biológico da espécie na região. Amostras de sangue, pelo e até carrapato permitem avaliar a saúde dos animais, analisar características morfológicas, como cor da pelagem, e comparar os indivíduos com as amostras já coletadas de indivíduos do norte da Bahia, que ficam armazenadas na UESC, instituição que coordena o projeto e realiza as análises.

“Checamos se o animal tem parasitas, se esses parasitas estão causando algum problema de reprodução, de imunidade, para que essa população, que é tão rara, possa se manter saudável e reproduzindo”, diz Flávia Miranda.

Outra linha do estudo é o que a ciência da conservação chama de “risco de transbordamento”, que ocorre quando espécies de parasitas, vírus e bactérias saltam de ambientes excessivamente degradados e passam a representar riscos de saúde para o humano, podendo, por exemplo, causar epidemias e pandemias.

Foto de uma pesquisadora analisando imagens de satélite
Foto de uma veterinária analisando amostras de sangue das preguiças
Acima: 
Paloma Marques analisa imagens de satélite para encontrar os fragmentos de Mata Atlântica mais propícios a abrigar preguiças-de-coleira. A veterinária Suellen Ferreira analisa amostras de sangue coletadas em preguiças-de-coleira.
FOTO DE ADRIANO GAMBARINI

“Imagina a quantidade de vírus e bactérias que existem na Mata Atlântica e na Amazônia que não conhecemos. Se estamos ainda identificando espécies de mamíferos como tamanduás e preguiças, imagine o que não se pode ver, e o que isso causa em nós”, diz Miranda. “Se tivermos uma visão egoísta, podemos pensar que, quanto mais preservarmos, menos problema teremos, seja de clima, doenças, etc.”

O encontro com as preguiças

Diante de seus movimentos lentos, capturar uma preguiça pode parecer fácil, mas não se engane. Para pegar o animal, a equipe conta com um escalador experiente – tanto em subir em árvores altas, quanto em manejá-lo da forma correta. Com o animal em solo, aplica-se anestésico e um protocolo detalhado.

“A equipe trabalha para que tudo seja feito da forma mais rápida possível. Coleta carrapato, pelo, tira sangue, faz swab oral e anal para detectar vírus e bactérias”, explica Rosa. “Pesamos, identificamos se é macho ou fêmea, checamos idade. Em 40 minutos aplicamos o antagonista e a preguiça começa a acordar. Esperamos o animal despertar por completo e o devolvemos exatamente na mesma árvore.”

Ao todo, foram capturados quatro animais de três fragmentos florestais de Sergipe. As amostras são enviadas também para parceiros como a Fiocruz e outras universidades. O resultado da expedição animou os pesquisadores.

Foto da Mata Atlântica em ameaça pela fronteira
Foto de uma rodovia com a placa "Travessia de animais silvestres"
Acima:

Os últimos fragmentos de Mata Atlântica de Sergipe estão sob constante ameaça pelo avanço da fronteira agrícola. Passagens de fauna sobre a Rodovia BA-099, mais conhecida como Linha Verde, na Bahia, tentam evitar uma das principais ameaças às preguiças: os atropelamentos.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI

“Na reserva Sapiranga [no litoral norte da Bahia], a densidade populacional é alta, mas essa não é a realidade que se espera em outros lugares”, diz Rosa. “Em Sergipe demorou para acharmos [os animais], e como é uma área grande, não se espera tanta densidade, por isso quatro indivíduos é um número muito bom.”

Um ano de preparo

Para que a expedição fosse um sucesso foi preciso um ano de planejamento. Em outubro de 2020, pré-expedição mapeou potenciais áreas. A ideia era fazer um levantamento para identificar locais com características propícias para preguiças-de-coleira, como temperatura, tamanho e tipos de vegetação.

A equipe percorreu 42 fragmentos de Mata Atlântica entre o extremo norte da Bahia e sul de Sergipe, conhecendo as matas e conversando com a população. Foram feitas entrevistas com membros das comunidades locais para confirmar avistamentos dos animais e frequência. No fim, apenas nove fragmentos foram visitados.

“Não dá para ir às cegas. É preciso investigar, conferir, checar estradas e acessos para ter uma noção da logística real da expedição”, pontua Rosa. “Como eram muitos fragmentos, tivemos que selecionar quais faríamos em 2021. Optamos pelos maiores, com grau elevado de conservação e, também, com base nos resultados das entrevistas e na facilidade de trabalhar com proprietários rurais. Muitos se mostraram solícitos, mas houve áreas particulares que gostaríamos de ter ido e fomos barrados.”

Pressões antrópicas

Espécie arborícola, com grande dificuldade de deslocamento e extremamente sensível a qualquer alteração no ambiente em que vive, as preguiças-de-coleira sofrem diversas ameaças – o último relatório do Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade (ICMBio) sobre os xenartros lista desmatamento decorrente das expansões urbana, agrícola e da pecuária, construção de rodovias e aumento do fluxo de tráfego e incêndios, inclusive em unidades de conservação. A perda e fragmentação das florestas leva ao isolamento das populações. Como consequência, há redução da variabilidade genética, outro problema para a sobrevivência da espécie.

Foto de uma preguiça e seu filhote sendo devolvida a árvore

Depois de capturada, sedada e profundamente analisada, preguiça-de-coleira é devolvida a uma árvore na reserva Sapiranga, na Praia do Forte, Bahia, pela veterinária Flávia Miranda, presidente do Instituto Tamanduá.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI
Foto da Mata Atlântica

Mata Atlântica de Sergipe.

FOTO DE ADRIANO GAMBARINI

“Com certeza o desmatamento é o principal problema para a população de preguiças como um todo. E não podemos esquecer da especulação imobiliária na Bahia”, diz Miranda. “Dentro deste grande projeto, fazemos o levantamento da dieta das preguiças-de-coleira. Observamos o animal se alimentando, fazemos a marcação e coleta de material da árvore, identificamos quais folhas ele está comendo. E várias vezes voltamos ao local para dar continuidade ao estudo e a árvore já foi cortada. É muito triste ver a situação da preguiça-de-coleira, porque não tem como desacelerar a degradação, e o que estamos vendo é uma destruição em massa, infelizmente.”

A caça é mais um fator destacado pelo relatório. E isso não é tudo. Recentemente, o aspecto sanitário chamou a atenção dos pesquisadores. Foram detectados animais com sarna na Praia do Forte. “É um animal que desce uma vez por semana para defecar, que quase não tem contato com o solo mas que agora está muito próximo a animais domésticos contaminados por esse parasita”, explica Miranda. “É um dado inédito, uma nova ameaça. Já é um impacto que vamos precisar mitigar.”

Resultados promissores

Todo o material coletado e dados obtidos pelos pesquisadores durante a expedição serão levados ao Plano Nacional de Conservação da Preguiça-de-coleira. Para Miranda, o mais importante é a continuidade dos estudos na região de Sergipe, para que se obtenha um levantamento detalhado das áreas de ocorrência da espécie.

“Teremos que fazer de forma emergencial um trabalho junto à secretaria de meio ambiente do estado, porque ali está degradado demais, e a população de preguiças está em declínio fortíssimo”, alerta Miranda.

De acordo com o documento do ICMBio, a conservação das preguiças-de-coleira depende da criação de estratégias de redução de desmatamento e de incêndios florestais e aumento das conexões entre fragmentos; recuperação de áreas florestais degradadas; e ampliação das unidades de conservação.

“Estamos perdendo espécies supervaliosas, não só porque elas fazem parte de uma cadeia ecológica, mas também porque existem muitas informações que ainda não temos e que vão se perder caso elas sejam extintas”, alerta Rosa. “Por isso é muito importante que se estude esses animais, aumente o investimento em pesquisas e em políticas públicas.”

Para Flávia Miranda, no cenário ideal, é preciso que haja um trabalho em conjunto. “Primeiro um plano piloto de crescimento imobiliário no Nordeste e um plano de gestão para Mata Atlântica, que já vem sendo trabalhado, mas que precisa ser colocado em prática”, diz ela. “Estamos falando de uma espécie de mamífero que está aqui há muito mais tempo do que nós e que pode ser a base de todos os animais placentários, incluindo os humanos.”

Não haverá equilíbrio enquanto nos enxergarmos dissociados do meio ambiente em que vivemos, dos recursos naturais que precisamos para sobreviver e das outras formas de vida que caminham conosco e que têm o mesmo direito de estar aqui. Cada ser vivo desempenha um papel crucial e, juntos, formam a mais rica teia do planeta. A cada ser vivo que ameaçamos nessa cadeia evolutiva, nos colocamos sob ameaça. Perder a preguiça-de-coleira é perder um pouco de nós mesmos, nossa essência, nossos valores, como sociedade e como seres humanos.

“Os xenartros têm mais de 65 milhões de anos, eles já passaram por muitas mudanças, alterações climáticas e, agora, não estão conseguindo se adaptar a algo tão destruidor, que somos nós”, diz Miranda. “Precisamos […] respeitar esse animal, brasileiro como nós, e que tem uma história evolutiva linda, que não podemos perder, porque conta a nossa própria história.”

Fonte: National Geographic

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Trajano Xavier

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