Fragmentação de biomas pode colocar pequenos mamíferos em rota de extinção
Os ecossistemas dos planaltos paranaenses vêm sofrendo com os impactos trazidos pelas atividades humanas na região. Rodovias, estradas, bairros e outras intervenções acabam ameaçando a diversidade de espécies presente nesses locais, diminuindo seus espaços. Mesmo nas áreas rurais, o impacto da agricultura convencional é muito elevado, com a progressiva substituição da paisagem natural para dar lugar a pastagens, monocultivos e plantios comerciais de pinus e eucaliptos.
Uma equipe multidisciplinar de pesquisadores se debruçou sobre os efeitos dessa intervenção nas comunidades de pequenos mamíferos dessa região. O estudo faz parte do projeto “Mamíferos do Refúgio de Vida Silvestre dos Campos de Palmas e do Parque Nacional dos Campos Gerais: uma análise comparativa sobre a composição taxonômica, comunidades, zoonoses, genética e conservação” (Promasto) e envolveu as universidades federais do Paraná (UFPR) e do Rio de Janeiro (UFRJ), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Federal Goiano (IFG).
Os animais sofrem com a fragmentação de seu habitat, visto que ela traz diversos problemas como a endogamia e a falta de recursos
Desde 2018, o grupo realiza excursões científicas em duas unidades de conservação da região, o Parque Nacional dos Campos Gerais e o Refúgio de Vida Silvestre dos Campos de Palmas e seu entorno. O monitoramento constatou que os animais sofrem com a fragmentação de seu habitat, trazendo diversos problemas como a endogamia e a falta de recursos.
“Notavelmente os grupos de animais vertebrados são sensíveis aos efeitos da fragmentação, que impõem restrições à permanência de espécies devido à limitação da área de vida, efeitos de borda, escassez de recursos e restrição à dispersão provocada pela matriz circundante”, destacou Liliani Tiepolo, pesquisadora do Laboratório de Análise e Monitoramento da Mata Atlântica, do Setor Litoral da UFPR, e coordenadora da pesquisa.
Efeito de borda é a degradação que um fragmento de mata sofre nas regiões de suas fronteiras com ambientes transformados pelo ser humano, o que é particularmente grave quando estes fragmentos estão “ilhados” em um ambiente totalmente transformado.
Os pesquisadores explicam que a criação de espaços protegidos tenta mitigar estes efeitos, mas neste caso não dão garantias de perpetuação para as espécies porque muitas destas áreas não possuem sua situação fundiária resolvida e os processos de ameaça continuam agindo sobre suas populações. Nas duas unidades estudadas os proprietários rurais ainda não foram indenizados pelo poder público e continuam fazendo uso agrícola de suas áreas.
Endogamia causa o empobrecimento genético das espécies
Um dos problemas criados pela fragmentação dos espaços é a falta de diversidade nos cruzamentos dos animais. Como destaca o pesquisador da UFRJ, Pablo Rodrigues Gonçalves:
“Avaliar os efeitos que a fragmentação de habitat traz sobre a diversidade e estrutura genética das espécies animais é fundamental para que medidas efetivas de conservação sejam tomadas”Pablo Rodrigues Gonçalves, pesquisador da UFRJ
“Do ponto de vista genético, a fragmentação causa danos nas populações, tornando-as mais susceptíveis aos processos de deriva genética e endogamia. Avaliar os efeitos que a fragmentação de habitat traz sobre a diversidade e estrutura genética das espécies animais é fundamental para que medidas efetivas de conservação sejam tomadas”.
Em termos práticos a fauna está confinada em habitats que não são grandes o suficiente para que as espécies possam se acasalar entre indivíduos não aparentados. A biodiversidade vai ficando encurralada em pequenos redutos de vegetação nativa.
Tiepolo explica que quando uma espécie está sujeita à deriva genética, variações aleatórias na frequência gênica podem causar a perda ou a fixação de variantes deletérias, o que provoca a diminuição da diversidade genética da população.
Este acasalamento entre indivíduos parentes é um dos impactos deste processo, reduzindo a expressão gênica dos indivíduos da população. As consequências podem ser a diminuição das taxas de reprodução ou o aumento à suscetibilidade a doenças, entre outros efeitos que podem contribuir para o desaparecimento da espécie.
Espécie ameaçada de extinção está entre as 32 encontradas
Para este trabalho, são realizadas coletas de material biológico em diversos locais no interior e na zona de amortecimento das Unidades de Conservação. Espécimes de pequenos roedores e marsupiais são coletados por meio de armadilhas. Para a captura de morcegos, são utilizadas redes de neblina armadas ao longo de trilhas e realizadas buscas ativas em ocos de árvores e cavidades naturais de rochas.
Em quatro excursões a equipe identificou 32 espécies de pequenos mamíferos, sendo quinze espécies de morcegos, doze espécies de pequenos roedores e cinco de marsupiais.
Algumas são endêmicas do bioma Mata Atlântica como o rato-do-mato Euryoryzomys russatus e o marsupial Philander quica, outras são endêmicas dos ambientes campestres do bioma, como o rato-focinhudo, Oxymycterus nasutus, e o morcego Histiotus montanus.
O projeto também identificou algumas espécies raras e novas ocorrências para a região, como o rato-das-árvores, Juliomys ossitenuis, e os morcegos Lasiurus blosevillii e Chrotopterus auritus, este conhecido como morcego-orelhudo, que é ameaçado de extinção, considerado uma das maiores espécies de morcego do Brasil, chegando a ter 57 centímetros de envergadura de asa e quase 100 gramas de peso.
A presença destas espécies raras, endêmicas e ameaçadas evidencia a importância destas unidades de conservação como áreas de refúgio de habitats naturais para a fauna, lembra o pesquisador da Fiocruz, Ricardo Moratelli, especialista em quirópteros e membro da equipe.
Estudo busca embasar ações para uma melhor gestão de áreas protegidas
O objetivo da pesquisa é apresentar aos gestores das unidades de conservação um diagnóstico detalhado e interdisciplinar das comunidades de pequenos mamíferos que ocorrem na região, considerando seus aspectos ecológicos, biogeográficos e genéticos, visando subsidiar ações de conservação para a fauna e para as áreas protegidas no contexto regional. O projeto está focado também em ampliar o conhecimento sobre a distribuição geográfica das espécies e zoonoses como o hantavírus, em uma região pouco investigada no estado do Paraná.
As localidades de amostragens para detecção de zoonoses estão cobrindo importantes lacunas em nível regional, o que terá efeito direto sobre os sistemas de saúde pública regional. O acúmulo de conhecimento gerado pelo projeto pode apoiar a confecção e a atualização dos planos de manejo das unidades de conservação, promover programas de investigação, de divulgação científica e de educação ambiental em escala regional.
Possível presença de hantavírus exige cuidado
O risco de zooneses transmitidas pelos animais foi abordado no estudo, especialmente a detecção do hantavírus, vírus do gênero Orthohantavirus da família Hantaviridae, ordem Bunyavirale que causa a Síndrome Pulmonar por Hantavírus (SPH).
A transmissão aos seres humanos ocorre principalmente por meio de inalação de aerossóis gerados a partir de urina de roedores infectados e geralmente se dá no meio rural. Quando em contato com humanos, o vírus pode causar a SPH, uma imunopatologia de rápida progressão que se inicia com uma febre moderada podendo evoluir para edema pulmonar não cardiogênico e choque.
A transmissão de hantavírus está associada ao desmatamento de áreas naturais, notadamente da Mata Atlântica, que já perdeu cerca de 85% de sua cobertura original
Algumas pesquisas têm apontado que a transmissão de hantavírus está associada ao desmatamento de áreas naturais, notadamente da Mata Atlântica, que já perdeu cerca de 85% de sua cobertura original. No sul do Brasil, um dos vetores do hantavírus é o roedor Oligoryzomys nigripes, encontrado em ambas as unidades de conservação investigadas pela equipe.
Esta espécie possui grande capacidade de adaptação a ambientes alterados, onde as florestas estão sendo convertidas em áreas antropizadas. Nas áreas rurais é comum a espécie frequentar até mesmo as moradias das pessoas e os galpões, comuns em sítios e fazendas.
Outra preocupação relacionada a transmissão de zoonoses, é o aumento da temperatura devido às mudanças climáticas, pois a taxa de contaminação é maior nos períodos de seca, como durante a crise hídrica que assolou o Paraná recentemente, quando é maior a possibilidade de contato com a urina destes vetores.
Não existem tratamentos ou vacinas contra a SPH. Segundo o pesquisador Bernardo Teixeira, da Fiocruz, “a SPH é uma zoonose pan-americana em razão das numerosas espécies de Orthohantavirus que são mantidas nos hospedeiros, os roedores da subfamília Sigmodontinae, principal grupo de hospedeiros na América do Sul. Daí reside a importância de se conhecer e mapear a fauna silvestre para que os agentes de saúde possam ter conhecimento da incidência do vírus na região, sua distribuição e prevalência de espécies.
Essas informações permitem determinar a taxa de circulação do vírus em roedores reservatórios e adotar medidas de prevenção e vigilância epidemiológica visando a redução dos casos de SPH na população”, ressalta o pesquisador.
Segundo os pesquisadores, as atividades de campo evidenciaram uma elevada biodiversidade, detectando novas ocorrências de espécies e, assim, ampliando o conhecimento sobre sua distribuição.
Devido a pandemia, este trabalho teve de ser interrompido, mas o trabalho continuou em laboratório, como o estudo do efeito do uso de agrotóxicos nas áreas de entorno sobre as espécies em relação a cadeia trófica, bem como a abordagem dos efeitos da fragmentação dos ambientes sobre a comunidade dos animais.
A pesquisa é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e faz parte de uma chamada em conjunto com o Instituto Chico Mendes (ICMBio) e Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs) que tem objetivo de contribuir para implementação de estratégias de manejo, uso sustentável e conservação na Mata Atlântica e Caatinga, focadas em UCs.
EDIÇÃO: RODRIGO CHOINSKI