Fuga das espécies é consequência drástica do aquecimento da Terra
Você já está fazendo as malas? Pois é bom começar a pensar nisso. Você deve ter notado que o clima já mudou, mas o pior é que, como estamos fazendo muito menos do que deveríamos quanto às emissões de gases de efeito estufa, as coisas deverão piorar, e muitos lugares, incluindo possivelmente a sua casa, precisarão ser abandonados. Tivemos algum tempo para evitar o pior, mas pouco fizemos. Desde meados da década de 1980, pesquisadores como Robert Peters, Thomas Lovejoy, Camile Parmesan e Lesley Hughes, ao perceber relações entre o aumento da temperatura em hábitats e mudanças de padrão migratórios em borboletas, pássaros e peixes, começaram a lançar alertas de que havia algo errado com o clima. Mas quase ninguém deu atenção ao que eles falavam, mesmo na comunidade científica.
Quando a questão climática começou a ser levada a sério, talvez ainda desse tempo para que danos mais sérios fossem evitados. Mas como boa parte dos políticos pensa na próxima eleição e não nas próximas gerações, a realidade é que, desde a conferência do clima de Quioto, em 1997, que estabeleceu o aumento da temperatura de 1,5º C como teto, e a de Paris, em 2016, que determinou uma redução de 43% na emissão de gases de efeito estufa, a situação só piorou. É quase inacreditável, mas quase trinta por cento das emissões de gases de efeito estufa de toda a história humana ocorreram depois do lançamento, em 2006, do filme blockbuster Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore.
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Não que as soluções sejam simples. Até porque se trata de uma crise global, mas que precisa, em parte, ser abordada localmente, por nações, cidades e, até mesmo, indivíduos. E indivíduos têm hábitos arraigados e, pior, como bem sabemos, de vez em quando elegem algum presidente negacionista que, em vez de trabalhar na direção correta, atrapalha e boicota. A célebre Quioto foi a terceira conferência; a primeira aconteceu em 1995, na Alemanha, e estamos agora na 27ª, no Egito. Desde o começo, sabendo que precisariam lidar com a reticência de governos e empresas, acabaram por estabelecer metas talvez muito complacentes, tentando fazer com que se firmasse um compromisso global para limitar o aquecimento a 1,5º até 2100, o que já seria ruim. Discursos foram e são proferidos, documentos foram e são assinados, mas, na prática, provavelmente estamos nos encaminhando para 2,8º de aumento, ou talvez mais, o que nos trará uma realidade, sem meias-palavras, apocalíptica.
Os problemas já são realidade em todo o mundo, Brasil incluído, e vão se agravar. As migrações causadas por mudanças climáticas vêm aumentando, mesmo quando disfarçadas de outros motivos. Secas prolongadas ou grandes enchentes podem levar a conflitos políticos, religiosos ou étnicos, provocando guerras civis e êxodos em massa, mas a causa inicial, climática, é com frequência menosprezada. Pouco antes de eclodir a guerra civil na Síria, a região enfrentou a pior seca em 900 anos, fazendo com que 1,5 milhão de agricultores perdessem tudo e fossem obrigados a migrar para as periferias das grandes cidades em condições extremamente precárias. Atribuir este fato como “a causa” da guerra civil seria exagerado, mas desprezá-lo é tampouco razoável.
O fato é que teremos tempos difíceis pela frente. Os lugares onde boa parte de nós vivemos talvez se tornem inabitáveis em algumas décadas, de modo que precisaremos pensar em novos lares, se não para nós, certamente para nossos filhos e netos. E, claro, como haverá mais gente e menos espaço disponível, será necessário negociar habitações com quem já está lá. Na maior parte dos casos, os países mais afetados são os mais próximos aos trópicos, ou seja, os mais pobres. Bangladesh sofre mais que o Canadá (cuja agricultura até se beneficia, temporariamente, do aumento da temperatura). E não são apenas os seres humanos que migrarão, pois plantas e animais selvagens também estão sendo expulsos de seus hábitats em função das mudanças climáticas.
Para os animais, diferentemente de nós, quanto mais perto dos polos vivem, pior, pois, conforme as temperaturas aumentam, mais e mais invasores avançam em direção às latitudes extremas, pressionando os habitantes originais. Enquanto o urso-polar sofre para sobreviver num ambiente com menos gelo, seu primo pardo vai ocupando a área. Como, para surpresa inicial dos cientistas, eles têm cruzado entre si, a perspectiva é que, no futuro, o urso-polar sobreviva apenas como fragmento genético nos pardos, assim como genes dos extintos neandertais estão presentes em nosso DNA. Castores têm subido do Canadá para o Alasca, e as represas que constroem, nos rios (já se contam aos milhares), estão alterando profundamente a ecologia da região, num efeito dominó que prejudica, entre outras coisas, a cobertura florestal, peixes e baleias. Os cientistas já conseguiram até mesmo medir a velocidade de migração de muitas espécies animais (e mesmo vegetais), e algumas estão se deslocando ao ritmo médio de cinco metros por dia.
Se a situação é dramática em terra, está ainda pior no mar. Na praia onde cresci, me lembro bem que, há até poucos anos, sabíamos que havia chegado a temporada da tainha quando víamos os cardumes nas paredes das ondas prestes a quebrar. Mas elas vêm diminuindo ano a ano e, no último inverno, não havia tainha alguma. Se o sumiço das tainhas que presenciei pode até ser resultante de fatores locais, os relatos científicos do que está acontecendo globalmente, nos oceanos, são sólidos e nada menos que aterradores. A redução do estoque de peixes era, até pouco tempo, explicada basicamente pela sobrepesca. Não que isso não seja um fator importante, mas cada vez mais a mudança climática tem entrado na equação.
Como mostra o alemão Benjamin von Brackel em Die Natur auf der Flucht (A Natureza em Fuga, de 2021), os oceanos, longe dos limites territoriais dos países, são terra sem lei, por mais que organismos internacionais venham tentando colocar ordem na bagunça. E a temperatura do mar vem subindo mais rápido do que a da terra. De fato, já está ocorrendo um fenômeno que alguns cientistas batizaram de “subtropicalização” do Mar do Norte, no qual a presença de espécies de latitudes mais baixas tem sido cada vez mais frequente, ao passo que as nativas tendem a desaparecer. A coisa chegou a ponto de provocar, na década passada, uma grave crise diplomática, uma vez que os países europeus haviam estabelecido cotas para a pesca das cavalinhas. Então, num determinado momento, elas quase desapareceram, para ressurgir bem ao norte, na Islândia.
Tradicionalmente sem esse peixe em seus mares, ela não fazia parte do acordo, e então os islandeses se lambuzaram com a novidade, gerando revolta em países como Reino Unido e Noruega. “Vocês estão roubando nossos peixes”, berraram os incomodados. “Mas foram os peixes que migraram”, argumentaram os felizes islandeses (que, caso houvesse sanções, pequenos, mas estrategicamente localizados, ameaçaram deixar a Otan). No fim a coisa se acalmou, ainda que a Noruega tenha boicotado a Islândia em tudo o que pôde. A questão que fica é: se nações democráticas e civilizadas, que convivem pacificamente há décadas, quase foram às vias de fato por causa da migração de peixes, o que nos espera, globalmente, com o incremento dessas ocorrências?
Num livro com título mais do que apropriado, Nomad Century – how climate migration will reshape our world (O século nômade – como a migração climática transformará nosso mundo, de 2022), Gaia Vince, ex-editora da revista Nature, afirma que, se tudo continuar como está, em cinquenta anos cerca de 3,5 bilhões de pessoas não conseguirão viver nos lugares em que hoje vivem. Elas serão expulsas de casa pela subida do nível do mar, por secas prolongadas, ou mesmo por temperaturas elevadas demais para a vida humana. Arredondando, estamos falando em mais de um terço da humanidade precisando deixar seus lares e países. E, se isso será um drama para quem “viaja,” será, também, para quem “hospeda.” O Brasil não tem um futuro promissor. Se nossas perspectivas não são tão ruins quanto as de Bangladesh ou Kiribati (o arquipélago no Índico que está, literalmente, naufragando), tampouco estamos bem. Boa parte de nossas cidades, como Rio de Janeiro, Santos e Recife, é bastante vulnerável à subida do nível do mar. Na outra ponta do problema, se a Amazônia virar savana, a Região Sudeste corre o risco de se desertificar. E parecemos estar empenhados nisso.
Diante de hábitats em transformação, os animais simplesmente migram, livres de controles de fronteira e vistos nos passaportes, na prática encurralando os que já vivem nos extremos. Os seres humanos, por outro lado, precisam lidar com uma invenção relativamente recente, as fronteiras nacionais. Por que alguém é obrigado a passar fome no Sudão do Sul enquanto há desperdício de alimentos na Europa? Se isso parece “apenas” uma questão moral, nas próximas décadas a pressão demográfica migratória poderá se tornar tão intensa que é melhor que os países mais ao norte, menos afetados pelas mudanças climáticas (em geral os principais responsáveis por elas), se preparem para receber e integrar os novos moradores.
E nós, brasileiros, teremos um probleminha adicional. Se, com o aquecimento global, boa parte da humanidade migrará para os polos, a realidade é que o Norte tem muito mais massa terrestre que o Sul. A parte de cima do globo conta com as extensas terras (em parte pouco habitadas) da Sibéria, da Escandinávia, do Alasca, do Canadá, da Islândia e da Groenlândia. Em nosso hemisfério, só teríamos, como destino, Patagonia e Antártida. Precisaremos torcer para que nossos hermanos argentinos aceitem compartilhar seus quintais conosco.