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Novo mapeamento expõe diversidade da Caatinga

Novo mapeamento expõe diversidade da Caatinga
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As matas verdes e densas que cercam a serra de General Sampaio, no Ceará, trazem à mente os tapetes verdes e viçosos da Amazônia. Pelo interior da Paraíba, da Bahia e de Minas, há árvores imponentes, como as barrigudas, que precisam de quatro adultos de braços abertos para serem abraçadas. Pedregosos, com vegetação rala, os campos rupestres da Chapada Diamantina lembram o Cerrado, embora, como as outras paisagens citadas aqui, estejam dentro da Caatinga.

Espalhando-se por 10 estados do Nordeste e Sudeste, a Caatinga tradicionalmente remete apenas a lugares áridos, mas na realidade é mais colorida e variada. Uma proposta de reclassificação, detalhada em um artigo de 59 páginas a ser publicado em breve na revista especializada The Botanical Review, do Jardim Botânico de Nova York, nos Estados Unidos, divide a Caatinga em 12 subunidades biogeográficas, de acordo com uma abordagem que considera a distribuição espacial de espécies endêmicas (exclusivas), derivada principalmente do tipo de solo (ver mapa abaixo).

“A Caatinga são muitas Caatingas”, sintetiza a botânica Daniela Zappi, uma das autoras do trabalho. Ela percorre o sertão do Nordeste desde 1987 em busca principalmente de cactos, aos quais dedicou o mestrado, o doutorado e boa parte dos 23 anos em que trabalhou no Kew Gardens, no Reino Unido, antes de voltar ao Brasil e dividir-se entre instituições de pesquisa de Belém e Brasília.

“A Caatinga tem onça-pintada, onça-parda e anta, em meio a paisagens de beleza estonteante”, acrescenta o biólogo Marcelo Moro, coordenador do estudo, que anda por lá desde seus tempos de estudante de ciências biológicas na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele começou a detalhar a distribuição geográfica das espécies de plantas e animais de algumas áreas do bioma no doutorado e em estágio de pós-doutorado, ambos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com bolsa da FAPESP.

Em agosto de 2016, voltou à UFC, agora como professor concursado. “Percebi que o trabalho de mapear toda a região precisava de mais gente”, contou. Juntaram-se a ele dois geógrafos especializados em mapeamentos, Rubson Maia, da própria UFC, e Luis Costa, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Minas Gerais. Também conseguiu atrair o interesse de quatro botânicos: além de Zappi, Nigel Taylor, botânico aposentado do Jardim Botânico de Kew, Vivian Amorim, da Universidade Federal do Cariri, e Luciano Queiroz, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. Zappi e Taylor são especialistas em cactos, Amorim em asteráceas, uma família botânica ampla, com 32 mil espécies, e Queiroz em leguminosas, família com 19 mil espécies.

Dormideira (Mimosa borboremae), encontrada apenas nas matas do planalto de Borborema — Foto: Eric Hunt / Wikimedia
Dormideira (Mimosa borboremae), encontrada apenas nas matas do planalto de Borborema — Foto: Eric Hunt / Wikimedia

Ao grupo de botânicos coube a tarefa de delimitar as áreas ocupadas por 328 espécies de plantas exclusivas da Caatinga. O mandacaru (Cereus jamacaru) e o xique-xique (Xiquexique gounellei) crescem por toda a região, mas não nos ambientes vizinhos, enquanto o quipá-mirim (Tacinga mirim), outro cacto, só foi encontrado no Ceará. Uma erva de pequenas flores brancas, a vassourinha-de-botão (Borreria apodiensis), limita-se à Chapada do Apodi, na divisa entre os estados do Rio Grande do Norte e do Ceará, uma área com muitas cavernas. Um roedor de 20 centímetros, o rabo-de-facho (Proechimys yonenagae), e pelo menos 30 espécies de lagartos são exclusivos das dunas do rio São Francisco, nordeste da Bahia (ver Pesquisa FAPESP no 57).

Moro e equipe refinaram uma classificação anterior, com oito áreas – ou ecorregiões. A categorização havia sido formulada pela zoóloga Agnes Velloso, da organização não governamental The Nature Conservancy Brasil (TNC Brasil), pelo engenheiro florestal Frans Pareyn e pelo agrônomo Everardo Sampaio, ambos da Associação Plantas do Nordeste (Apne), e publicada como livro em 2002 pela própria Apne.

A nova divisão da Caatinga adota a nomenclatura internacional para delimitação de áreas de endemismos (da maior para a menor, reino, região, domínio, província e distritos), oficializada em julho de 2008 na Journal of Biogeography (ver definições detalhadas no box). De acordo com essa abordagem, toda a Caatinga foi considerada um domínio biogeográfico. As três unidades com maior área são províncias e subprovíncias: dois subtipos de caatinga (neste caso com inicial minúscula por ser uma parte da Caatinga), a stricto sensu e a de areia, e a Chapada Diamantina.

A caatinga stricto sensu assenta-se em terrenos com rochas cristalinas (vulcânicas) e solos pedregosos e moderadamente férteis. Por sua vez, tem três subdivisões (distritos biogeográficos) – as Depressões Sertanejas Norte e Sul e o Distrito Borborema –, cada uma com comunidades próprias de animas e plantas, embora sejam vizinhas. Só na Depressão Sertaneja Norte, podem ser encontrados, por exemplo, a palmeira Syagrus cearenses e o calango-de-lajeiro (Tropidurus jaguaribanus); apenas na Depressão Sertaneja Sul crescem o arbusto Holoregmia viscida e o pau-jacaré (Tabaroa caatingicola); e somente no Distrito Borborema vivem o cacto Pilosocereus chrysostele e a erva de flores lilases, a dormideira (Mimosa borboremae).

A segunda grande unidade da Caatinga, a caatinga de areia, é constituída por terrenos com rochas sedimentares que originaram solos arenosos e pobres em nutrientes. Por sua vez, é subdividida em quatro partes, cada uma com suas espécies próprias. A cebola-brava (Cearanthes fuscoviolacea) é uma das espécies endêmicas do distrito Ibiapaba-Piauí; o soldadinho-do-araripe (Antilophia bokermanni), um pássaro pequeno e colorido, vive apenas nas matas úmidas do Araripe; o lagarto-escrivão (Scriptosaura catimbau) é típico do distrito Tucano-Jatobá e geralmente vive enterrado. Já na areia das dunas do São Francisco vive o roedor Trinomys yonenagae, os lagartos Procellosaurinus tetradactylus e Eurolophosaurus divaricatu e as serpentes Typhlops yonenagae e T. amoipira, exclusivos dali.

Na caatinga stricto sensu e na de areia, as plantas desenvolveram mecanismos de adaptação ao clima seco: muitas espécies perdem as folhas no início da longa estação seca e rebrotam rapidamente logo que caem as primeiras chuvas. Nessas duas áreas há também espécies comuns às que ocorrem na Mata Atlântica, no Cerrado e em áreas não alagáveis do Pantanal, como o angico (Anadenanthera colubrina), a jurema-branca (Piptadenia retusa) e a aroeira (Astronium urundeuva). “Há, ainda, pequenas áreas, chamadas encraves, de florestas secas no Cerrado e na Mata Atlântica”, diz Moro. Segundo ele, matas secas na Bolívia, na Venezuela e na Colômbia também têm espécies em comum com a caatinga no Brasil.

Já a província da Chapada Diamantina, dentro do Domínio da Caatinga, ocupa as áreas altas da Bahia, com vegetação de caatinga, matas úmidas, savanas e campos rupestres (ver Pesquisa FAPESP nos 86).

Outro conjunto de unidades são mais três distritos – Potiguar, Irecê e Peraçu –, com muitos afloramentos (rochas expostas) de calcário, redes de cavernas e animais ainda pouco conhecidos, que não se distinguiam nos mapas anteriores. Parte das cavernas está protegida no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu.

Uma última unidade se encontra isolada, ao norte, margeando o litoral: é a costa da Caatinga, que reúne espécies de plantas desse bioma, do Cerrado e da Amazônia, devido à precipitação mais alta no litoral que no interior da Caatinga.

Moro, com sua equipe, está mapeando os encraves de matas úmidas nas terras altas em meio à Caatinga, os chamados brejos de altitudes, com espécies de plantas e animais encontrados na Amazônia e na Mata Atlântica, e outras endêmicas. Seu plano é terminar o mapeamento no próximo ano.

“Sem saber em que condições uma espécie ocorre em um dado local, não é possível recuperar uma área degradada, pois a primeira pergunta é ‘quais espécies plantar?’”, comenta o biólogo da Unicamp Fernando Martins, que não participou desse mapeamento, mas estuda a Caatinga há cerca de 30 anos e foi o orientador de doutorado e supervisor de pós-doutorado de Moro.

Araras-azuis-da-caatinga (Anodorhynchus leari), típicas do semiárido brasileiro — Foto: Nina Wenóli /iNaturalist
Araras-azuis-da-caatinga (Anodorhynchus leari), típicas do semiárido brasileiro — Foto: Nina Wenóli /iNaturalist

“Além disso”, ele prossegue, “há espécies que podem viver juntas e outras que se excluem por competição. Espécies vivendo em hábitats semelhantes podem viver juntas, pois já houve a exclusão competitiva. Associando espécies a regiões com ambientes semelhantes obtêm-se muitas informações imprescindíveis tanto na área teórica da biologia quanto na prática”.

Martins gostou de ver que os shapefiles – as camadas – do mapa, cada um com os diferentes tipos de ambiente dentro da Caatinga, foram publicados digitalmente com acesso aberto, o que permite a qualquer pesquisador associar os dados que coletar com as distintas áreas. “Isso é muito importante para possibilitar o entendimento não só de como foi possível a evolução de uma biota tão diversificada e regionalizada num ambiente tão severo, mas também sobre como conservar essa biodiversidade e estabelecer novas unidades de conservação capazes de preservar a biota em face da mudança climática”, ele comenta.

A bióloga Marcela Cruz Moreira, orientada por Martins no mestrado, comparou as espécies de angiospermas (plantas com flores) da vegetação de caatinga entre terrenos cristalinos e terrenos sedimentares. A hipótese inicial era de que os terrenos sedimentares, com solos mais profundos e maior capacidade de reter água, poderiam abrigar espécies muito diferentes. Mas não. “Os terrenos cristalinos, que víamos como mais seletivos, sustentam espécies mais diferentes que os sedimentares, podendo sugerir a atuação de processos evolutivos muito complexos”, conta Martins.

O ecólogo Marcelo Tabarelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), comenta: “O novo trabalho mostra um olhar mais acurado sobre a Caatinga, até então considerada como unidade única, embora a gente, que a percorre, saiba que não é. Esse tipo de divisão, baseado em características físicas do ambiente, deve funcionar bem para as plantas, mas não sei se também se aplicaria para outros grupos taxonômicos”.

O geógrafo paraense José Maria Cardoso da Silva, da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, ressalta: “A grande questão hoje é saber o quanto dos padrões de endemismo da Caatinga é resultado da pressão humana na região”. As áreas agrícolas e pastagens abandonadas ou em uso cobrem 89% desse bioma, em comparação com o que deve ter existido há milhares de anos, sob as mesmas condições de clima e solo, antes da ocupação humana, de acordo com análises coordenadas pelo biólogo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Helder Araujo e publicadas em outubro de 2023 na Scientific Reports (ver Pesquisa FAPESP no 335).

“O desmatamento tem sido intenso, desde o século XVI, especialmente a leste, nas depressões norte e sul e no Distrito Borborema”, observa Araujo. “Também se perdeu muita mata ciliar, hoje já bastante rara ao longo dos rios, como o São Francisco.” Na caatinga de areia encontram-se as principais unidades de conservação da região, como o Parque Nacional da Serra da Capivara, a Estação Ecológica do Raso da Catarina e a Floresta Nacional Araripe-Apodi, que podem servir como exemplos de parte dos ambientes originais da Caatinga.

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Trajano Xavier

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