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O que se planta se colhe: os múltiplos benefícios da agricultura urbana e periurbana para cidades e pessoas

O que se planta se colhe: os múltiplos benefícios da agricultura urbana e periurbana para cidades e pessoas
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Há cinco anos, Ionice de Fátima Cassimiro, moradora do bairro de Jaguaribe, em Osasco, região metropolitana de São Paulo, começou a plantar hortaliças e alguns legumes em um espaço cedido pela prefeitura municipal, situado a 40 min a pé de sua casa. Neste tempo decorrido, a agricultora urbana de 60 anos saiu de uma depressão profunda e passou a produzir alimentos ao lado da filha para consumo de sua família e para vender. Alface, couve, almeirão, escarola, coentro, salsinha, salsão, abóbora, morango — a lista varia com a sazonalidade, mas tudo é produzido sem veneno, garante. O combate às pragas é feito com uma mistura caseira que leva cebola e vinagre.

Com uma rotina de trabalho que começa de manhã cedinho e envolve pelo menos cinco horas de rega diária das plantas, ela atravessou os aparentemente infindáveis dias de pandemia da Covid-19. “Foi cansativo e ainda é, mas compensa. É muito gratificante mexer com a terra. Eu louvo a horta, canto, converso com as plantas, elas crescem mais bonitas e não me condenam”, diz em entrevista por telefone ao Um Só Planeta. Na juventude, trabalhou como babá e cozinheira. Mas, com o passar do tempo, adoeceu e precisou reduzir o ritmo. Mais tarde, ao tentar voltar ao mercado, encontrou muitas portas fechadas.

“Você não me vê, mas as pessoas de cor, os negros, sofrem muito preconceito na hora de procurar serviço. Comecei a buscar oportunidades em escolas, diziam que eu não encaixava no perfil”, diz, acrescentando que por estar acima do peso também encontrava dificuldade. Sua família, costuma dizer, “tem vida curta”. Perdeu irmãos, cunhado e o marido para doenças e teve um filho assassinado. A depressão veio à galope. Até que uma de suas irmãs, que cuidava de uma horta urbana no Centro de Treinamento do Audax, área esportiva perto da capital paulista, puxou Ionice para a atividade. Para quem cresceu numa fazenda em Minas Gerais, cultivando no campo, o convite causou espanto: “Como assim plantar horta na cidade? Vou carpir o que, porta de madeira?”, pensou na época.

 Ionice de Fátima Cassimiro, agricultora urbana em Osasco, Grande SP. — Foto: Acervo pessoal
Ionice de Fátima Cassimiro, agricultora urbana em Osasco, Grande SP. — Foto: Acervo pessoal

Mas resolveu se dedicar. Atualmente, a horta é sua principal fonte de renda, que complementa com faxinas e confecção de bolos. “Eu vendo em condomínios, na rua, coloco no carro. Consegui uma clientela em Osasco e Alphaville”, conta. Escoar a produção ainda é um desafio, o que acarreta perdas de cultivos, que acabam sendo enviados para a compostagem. Outro desafio é o clima, cada vez mas instável.

“Minha horta não tem sombrite, com o sol forte e a chuva extrema, as plantas sofrem muito”. Apesar dos percalços, dona Ionice mantém o entusiasmo de pé: “Eu aprendo que nem tudo na vida é pra ganhar. Tem época de sorrir e época de chorar, como na natureza. Mas ser agricultora urbana é maravilhoso”, afirma, destacando que as pessoas “precisam ser alfabetizadas sobre orgânicos e não orgânicos, o que é bom ou que é ruim para nossa saúde”.

Alguns dos alimentos cultivados por Ionice, em Osasco. — Foto: Acervo pessoal
Alguns dos alimentos cultivados por Ionice, em Osasco. — Foto: Acervo pessoal

Múltiplos benefícios

Segurança alimentar, aprendizado, saúde física e mental, geração de renda…todos esses ganhos apontados por Ionice são benefícios associados à agricultura urbana. Além disso, produzir alimentos mais perto dos centros de consumo também se revela um dos caminhos para enfrentar a crise climática — reduz as emissões nocivas de gases de efeito estufa do transporte como também garante frutas, legumes e hortaliças mais frescas nas mesas das famílias. E os ganhos não param aí. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra a potência da agricultura urbana, aquela que acontece dentro dos limites da cidade, e da periurbana, que engloba o cultivo nos arredores.

O município escolhido foi Osasco, lar de dona Ionice na região metropolitana de São Paulo e um dos mais dendos do país , com 11,2 mil moradores por quilômetro quadrado. Osasco há anos incentiva o cultivo agrícola dentro e ao redor do seu território. E, como diz o ditado o que se planta se colhe: a pesquisa realizada pelo TEEB Agricultura & Alimentos, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em parceria com o Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces), aponta múltiplos benefícios na região, que vão da segurança alimentar e nutricional, passando pela geração de emprego e renda, conexão com a natureza até a conservação da biodiversidade.

Horta do programa do Departamento de Economia Solidária, da Secretaria de Emprego, Trabalho e Renda (SETRE). — Foto: : Marcelo Deck/Prefeitura de Osasco
Horta do programa do Departamento de Economia Solidária, da Secretaria de Emprego, Trabalho e Renda (SETRE). — Foto: : Marcelo Deck/Prefeitura de Osasco

Para a pesquisa, foram analisadas iniciativas de agricultura urbana da economia solidária, incluindo o cultivo de ervas medicinais, como 16 hortas vinculadas a programas promovidos pela prefeitura da cidade. Essas iniciativas englobam cerca de 1.110 canteiros, 55 agricultoras e agricultores que cultivam hortaliças e plantas medicinais destinadas tanto ao autoconsumo quanto à venda.

Outra frente estudada foram as hortas pedagógicas instaladas na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) José Veríssimo de Matos e na EMEIEF Dr. Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro. Ambas as hortas têm a produção agroecológica de hortaliças como uma ferramenta de educação para estudantes, envolvendo múltiplas disciplinas.

Terra que ensina

Segundo Adriane Este, diretora da EMEIEF Dr. Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro, onde estudam mais de 1.200 crianças, as hortas urbanas têm uma importância significativa na educação, pois promovem uma melhoria na alimentação e na conscientização sobre hábitos saudáveis. “As crianças participam ativamente do processo de plantio e colheita, o que gera um sentimento de valorização do que elas mesmas cultivam. Isso se reflete em uma diminuição do consumo de alimentos industrializados e um aumento no interesse por alimentos saudáveis, como frutas e verduras que elas plantam na horta”, conta ao Um Só Planeta.

Além disso, as hortas urbanas permitem que as crianças aprendam de forma interdisciplinar, envolvendo não apenas ciências biológicas, mas também matemática e português, por meio de atividades como leitura de histórias e resolução de problemas relacionados ao cultivo. Adriane destaca que essa experiência prática e o contato com a natureza ajudam as crianças a se tornarem mais centradas e a desenvolverem um maior interesse por aprender, além de promoverem interações sociais e cooperação entre elas.

Crianças na horta da EMEIEF. — Foto: Adriane Este/Acervo Pessoal
Crianças na horta da EMEIEF. — Foto: Adriane Este/Acervo Pessoal

A horta na EMEIEF foi criada no final de 2022, em parceria com o iFood e as ONGs Pé de Feijão e Prato Verde. O iFood forneceu canteiros, sementes e apoio financeiro para a construção do espaço e as ONGs deram todo apoio de capacitação e conhecimento de como cuidar de uma horta. A Secretaria de Educação também teve um papel importante, intermediando a comunicação e ajudando a enviar pessoas para colaborar na execução do projeto. Adriane observa que a comunidade ao redor desenvolveu um respeito coletivo com a horta. “Antes, havia preocupações com invasões e danos ao espaço, mas, com o tempo, a percepção sobre a importância da horta mudou”.

Atividade com os docentes da escola sobre a manutenção das hortas. — Foto: Adriane Este/Acervo Pessoal
Atividade com os docentes da escola sobre a manutenção das hortas. — Foto: Adriane Este/Acervo Pessoal

A parceria com o iFood e a ONG Pé de Feijão, que ajudaram na implantação e no fornecimento de recursos, se encerrou, e agora a equipe está aprendendo a gerenciar a horta de forma mais autônoma, o que traz desafios, como o orçamento apertado para a compra de insumos e sementes. Mas, segundo a diretora, a escola está se esforçando para manter a horta ativa e produtiva, mesmo diante dessas dificuldades, e busca novas parcerias e recursos para garantir a continuidade e o crescimento do projeto. “As hortas pedagógicas trouxeram muitas coisas boas, não só a plantação, mas também a conscientização sobre a importância de cuidar do espaço”, avalia Adriane, refletindo uma visão positiva sobre os benefícios educacionais e sociais proporcionados pelo espaço verde.

A pesquisa da FGV também avaliou o terraço produtivo instalado sobre a laje de edifício comercial da empresa iFood, que abriga estufas e estruturas de cultivo de alimentos. O destino principal da produção é a doação ao Banco de Alimentos, e uma pequena parcela é destinada ao consumo no restaurante da empresa, ressaltando as oportunidades para o setor corporativo investir nesse tipo de solução.

Terraço do Ifood — Foto: Divulgação
Terraço do Ifood — Foto: Divulgação

Muito além dos que os olhos veem

Por meio de entrevistas, a equipe de pesquisa da FGV mapeou os benefícios percebidos pelas pessoas envolvidas com hortas urbanas em Osasco em quatro dimensões: econômica, ambiental, humana e social. Para cada dimensão analisada, o estudo destacou três benefícios mais citados.

– Humana: (re)conexão com a natureza e cuidado; saúde física, mental e psicológica; bem-estar.

– Social: segurança alimentação e nutricional; aprendizado e educação; coesão comunitária.

– Econômica: geração de emprego e renda; fortalecimento da economia solidária; redução de gastos com alimentação.

– Ambiental: conservação da biodiversidade; melhoria da qualidade do ar e solo; redução de resíduos urbanos.

Maíra Bombachini Silva, mestre em Estudos de Desenvolvimento e pesquisadora do FGVces, destaca que agricultura urbana e periurbana é uma agenda multifacetada com múltiplos atores e soluções, e que apesar de parecer algo recente, remonta a tempos desafiadores onde a escassez se impôs sobre as cidades, a exemplo das duas grandes guerras mundiais. “Era um forma de fornecer produção de alimentos e abastecimento local durante aqueles tempos belicosos e de austeridade”.

No século 21, as hortas urbanas têm ainda o potencial de aumentar a resiliência das cidades à emergência climática, garantindo alimentos mais frescos e com menor emissão – dado que se reduz a distância entre o centros de produção e consumo. De quebra, aumenta a resiliência dos centros urbanos. A pesquisa também buscou fornecer um panorama sobre três serviços ecossistêmicos no município de Osasco relacionados ao clima (regulação da temperatura e umidade), ao solo (controle das taxas de erosão) e à água (regulação do fluxo de água e ciclo hidrológico), temas que estão ganhando espaço no debate das políticas públicas urbanas e no planejamento das cidades por sua importância para a resiliência climática.

Enquanto a erosão do solo está relativamente controlada devido a extensas áreas construídas, as projeções futuras (2020-2050) para as dinâmicas de água e clima trazem consigo sinais de alerta. A tendência é de manutenção do histórico de enchentes e de pouco abastecimento do lençol freático. Já na frente de clima, com o aumento esperado da temperatura média, a expectativa é que vegetação existente seja ainda menos eficaz em atenuar as ilhas de calor.

Couve cultivada em horta urbana em Osasco, SP. — Foto: Fernanda Cazarini | Prefeitura de Osasco
Couve cultivada em horta urbana em Osasco, SP. — Foto: Fernanda Cazarini | Prefeitura de Osasco

“Há indicativos importantes de acentuação do fenômeno de ilhas de calor no município. Essa questão impacta hoje em perdas na produção, queda na produtividade e problemas de saúde. Nesse sentido, é importante reafirmar a importância da multiplicação de espaços verdes e de áreas de agricultura urbana em Osasco para melhorar a resiliência da cidade frente a eventos climáticos extremos”, enfatiza Jéssica Chryssafidis, pesquisadora do FGVces e gestora da iniciativa “Agendas municipais de agricultura urbana e periurbana: fortalecendo a inserção da agricultura nos processos de planejamento urbano”, ao qual o estudo está ligado.

Os ganhos são amplos, seja do ponto de vista ambiental, social ou humano. “Quando pensamos nas cidades com suas ilhas de calor, alta densidade populacional e solos impermeáveis, a inclusão de espaços verdes ajuda na regulação climática”, diz Maíra. Ela destaca ainda benefícios psicológicos positivos e melhora do bem-estar. Em presídios, por exemplo, hortas urbanas podem ser uma ferramenta educativa, permitindo o aprendizado de uma nova habilidade, e também uma atividade terapêutica. “Há muitos benefícios psicossociais de se mexer com a terra e acompanhar o ciclo natural das coisas”, diz.

Horta urbana em Osasco: espaço verde oferece mosaico de soluções para as cidades. — Foto: Agência EDN/Pedro Paquino
Horta urbana em Osasco: espaço verde oferece mosaico de soluções para as cidades. — Foto: Agência EDN/Pedro Paquino

Ao refletir sobre a expansão dessas soluções nas cidades, a pesquisadora enxerga duas frentes prioritárias de atuação dos municípios. De um lado, institucionalizar as hortas urbanas por meio de políticas públicas robustas, garantindo a transversalidade desse tema em diferentes pastas – ambiental, educação, saúde e desenvolvimento urbano, entre outras. Outro aspecto essencial é pensar a função social da propriedade. “Osasco, por exemplo, tinha muitos espaços baldios, abandonados, que foram usados para a criação de hortas”, exemplifica.

Nesse sentido, Maíra vê com bons olhos a lei Nº 14.935, sancionada pelo governo federal em julho, que estabelece uma Política Nacional para a agricultura urbana e periurbana. O objetivo é garantir segurança alimentar, utilizar espaços ociosos, e criar oportunidades de renda nas áreas urbanas. Também articula-se a produção de alimentos com programas de abastecimento em instituições públicas, estimulando o trabalho familiar e cooperativo, além de promover a educação ambiental e práticas agroecológicas.

Pretende-se ainda facilitar o acesso a linhas de crédito, e incentivar a comercialização direta entre produtores e consumidores, promovendo feiras livres e campanhas de valorização dos produtos. “Essa lei é um bom indicativo político para amparar políticas municipais de hortas urbanas. Espero que de fato amplie o mosaico de soluções das hortas, e apoie e reconheça as pessoas envolvidas”, avalia.

Em todas as iniciativas analisadas em Osasco foram mencionados desafios e demandas a serem consideradas pela gestão municipal. Segundo as pessoas ouvidas, a ampliação e o fortalecimento das experiências de AUP deveriam passar por políticas de acesso à terra e à água, aumento de orçamento público para investimento em infraestruturas e equipamentos, assistência técnica contínua voltada para produção e para promoção de empreendimentos coletivos e apoio para comercialização.

O estudo da FGV é integrante de uma série de pesquisas que trazem, cada uma, informações-chave sobre quatro diferentes territórios brasileiros. Além de Osasco, foram contemplados Distrito Federal, Natal (RN) e Manaus (AM). Cada vez mais a sociedade e os governos reconhecem os benefícios de integrar a natureza às cidades. Agora é hora de cultivar para colher.

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Trajano Xavier

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