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Porcos selvagens ameaçam hotspots de biodiversidade na América do Sul, mostra estudo

Porcos selvagens ameaçam hotspots de biodiversidade na América do Sul, mostra estudo
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Os porcos selvagens são reconhecidos mundialmente como um incômodo para o meio ambiente. A IUCN os classifica como uma das piores espécies invasoras devido ao seu potencial de danificar plantações, abrigar doenças e interromper processos ecológicos.

Recentemente, uma pesquisa publicada no Journal for Nature Conservation revela que a presença crescente de javalis (Sus scrofa) e porcos-do-mato (resultantes do cruzamento de javalis com porcos deomésticos) em toda a América do Sul representa uma ameaça maior aos hotspots de biodiversidade e às áreas protegidas do que se acreditava anteriormente.

Os pesquisadores avaliaram as faixas de adequação das espécies em diferentes níveis analíticos e descobriram que um número significativamente maior de áreas protegidas está invadido ou potencialmente em risco do que havia sido demonstrado em pesquisas anteriores. Além disso, quase metade (44,8%) das ocorrências de javalis estudadas estavam dentro de hotspots de biodiversidade.

Na América do Sul, os porcos domésticos chegaram com os colonizadores europeus, e os javalis foram introduzidos pelo fazendeiro argentino Pedro Olegario Luro no início do século 20 para fins de caça. Com o tempo, os javalis se dispersaram pelo continente, cruzaram com porcos domésticos e formaram grandes populações.

A avaliação revela percepções convincentes sobre a vulnerabilidade de hotspots específicos na região. A Mata Atlântica, em especial, surge como a mais suscetível, com expressivos 85% de sua área total considerada adequada para porcos selvagens (ou seja, um habitat que permite que eles se desenvolvam), seguida pelo Cerrado (61,3%), pelas florestas temperadas valdivianas do Chile (37,5%) e pelos Andes tropicais (5,6%).

Esses resultados geram mais um alerta para que os conservacionistas adotem medidas de precaução, pois as espécies invasoras podem causar ainda mais danos à vida selvagem em áreas que já estão ameaçadas.

Wild pigs in Mato Grosso, Brazil, scampering away.
Porcos selvagens em Mato Grosso. Pesquisas revelam que a presença crescente de porcos selvagens na América do Sul representa uma ameaça maior do que se acreditava aos hotspots de biodiversidade e às áreas protegidas. Foto: Bernard Dupont via Flickr (CC BY-SA 2.0).

A expansão dos porcos selvagens na América do Sul

A ecologista brasileira Clarissa Alves da Rosa, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que não participou do estudo, disse à Mongabay que “o aumento de javalis no Brasil como um todo, e especialmente na Mata Atlântica, está associado à interação da espécie com os seres humanos”.

Ela explica que espécies invasoras, como os porcos selvagens, podem complementar suas dietas com alimentos cultivados por humanos. E quando isso acontece, acrescenta ela, o porco selvagem “tende a realmente aumentar e expandir sua população”. Quando mencionamos um bioma fragmentado, como a Mata Atlântica, essa alimentação suplementar vem de culturas agrícolas – principalmente milho e cana-de-açúcar. O que acontece é que eles têm o ambiente perfeito – há fragmentos de floresta onde podem se abrigar e culturas agrícolas onde podem se alimentar”.

Ela também menciona que outro fator que contribui para o aumento da distribuição da espécie é o fato de que algumas pessoas, interessadas em manter a população de javalis, os transportam e os soltam em áreas onde eles não estavam presentes anteriormente para obter licenças de caça, já que eles são a única espécie permitida para caça no Brasil. Com relação a essa questão, Alves da Rosa menciona: “Há um debate no meio acadêmico sobre se consideramos os javalis como um recurso ou como um problema”.

Ela acrescenta ainda: “Se ele for considerado um recurso, há um interesse em manter sua população porque as pessoas não querem que esse recurso desapareça. Mesmo que, em termos de política pública e ciência, classifiquemos os javalis como um problema, sabemos que a população como um todo os vê como um recurso. Ele acaba sendo uma fonte de alimento, e algumas pessoas gostam de caçá-lo.”

Sunset over the Bocaina Mountain Range National Park in the Atlantic Forest.
Pôr do sol no Parque Nacional da Serra da Bocaina, na Mata Atlântica, um hotspot de biodiversidade vulnerável, com expressivos 85% de sua área total considerada adequada para porcos selvagens. Foto: Heris Luiz Cordeiro Rocha via Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0).

Impactos na biodiversidade

Em seus estudos de doutorado no Parque Nacional de Itatiaia, na divisa de Rio de Janeiro e Minas Gerais, um dos objetivos de Alves da Rosa era explorar se o comportamento do porco selvagem poderia substituir as funções ecológicas benéficas fornecidas pelas queixadas (Tayassu pecari), mamífero social frequentemente confundido com um porco e espécie ameaçada na região. Por meio de sua investigação, ela descobriu impactos ambientais distintos causados por essas duas espécies, apesar de seu comportamento semelhante.

Embora tanto os porcos selvagens quanto as queixadas se dediquem a farejar o solo, revirando-o e ajudando a fixar as sementes, Alves da Rosa observou uma diferença significativa: os javalis, devido a seus focinhos mais longos, criam buracos maiores que removem camadas cruciais do solo, semelhante a arar o solo. Por outro lado, as queixadas contribuem para a formação de pequenos lagos por meio de suas atividades de escavação, que servem como locais vitais para a reprodução de alguns anfíbios.

Além de remover camadas importantes do solo, os porcos selvagens estão associados a vários impactos ambientais, como a destruição de nascentes de água, o arrancamento de plantas nativas e a predação de pequenos invertebrados, de acordo com Alves da Rosa. Esses exemplos ilustram os danos que os porcos selvagens podem causar em áreas relevantes para a conservação da biodiversidade e enfatizam ainda mais a importância de avaliar sua potencial expansão.

Essas descobertas geram uma preocupação especial na Mata Atlântica, região considerada a mais vulnerável às invasões de porcos selvagens no atual estudo. O local abriga mais de 20 mil espécies de plantas, incluindo 6 mil espécies endêmicas e a maior diversidade de árvores por hectare do mundo. Ao mesmo tempo, possui o maior número de espécies ameaçadas e extintas de qualquer bioma no Brasil, conforme indicado no relatório recentemente publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A wild pig and a peccary.
Quando os pesquisadores compararam os comportamentos dos porcos selvagens invasores (à esquerda) e das queixadas nativas (à direita), encontraram muitas diferenças. Fotos: pedrik via Flickr (CC BY 2.0) e Whaldener Endo via Wikimedia Commons.

Métodos e resultados

O estudo que avaliou a potencial distribuição de porcos selvagens em larga escala na América do Sul envolveu uma equipe internacional e multidisciplinar de 17 cientistas que utilizaram um método chamado de modelagem de nicho ecológico, combinando registros de 6.502 ocorrências de porcos selvagens, tanto diretos (avistamentos) quanto indiretos (rastros e armadilhas fotográficas) ao longo de 116 anos (1906-2022) com dados ambientais e informações de 278 áreas protegidas.

Essa abordagem permitiu que eles investigassem a dispersão atual e potencial de porcos selvagens em ecorregiões, áreas protegidas e hotspots na América do Sul, abrangendo especificamente a Argentina, o Brasil, o Uruguai, o Paraguai, o Chile e a Bolívia.

Ao todo, 68 ecorregiões foram comparadas, mostrando que 41 já tinham registros de porcos selvagens, enquanto 64 apresentavam condições adequadas ou parcialmente adequadas para sustentar sua presença. Apenas quatro ecorregiões foram classificadas como totalmente inadequadas, e três delas são desertos frios com condições climáticas extremas. Esses resultados refletem a alta capacidade de adaptação dos porcos a diferentes ambientes.

O artigo acrescenta que o sucesso relativo das espécies na colonização de diferentes habitats pode ser atribuído ao seu “alto potencial reprodutivo”, “dieta extremamente flexível”, “ampla tolerância climática e topográfica” e “adaptabilidade comportamental sob condições contrastantes de pressão humana”.

Com relação às áreas protegidas na América do Sul, o estudo destacou que as paisagens protegidas e os parques nacionais correm maior risco. Ao comparar o número de áreas afetadas e o risco potencial em cada país, o Uruguai ficou em primeiro lugar em ambas as categorias, tendo todas as suas áreas protegidas “invadidas” por porcos selvagens.

A camera trap image of a pig.
Os cientistas usaram o método de modelagem de nicho ecológico combinando registros de 6.502 ocorrências de porcos selvagens, tanto diretos (avistamentos) quanto indiretos (rastros e armadilhas fotográficas) ao longo de 116 anos (1906-2022) com dados ambientais e informações de 278 áreas protegidas. Foto: Coleção do Instituto Alto Montana de Clarissa Rosa/Serra Fina.

Os resultados obtidos pelos pesquisadores diferiram significativamente das avaliações anteriores feitas em países individuais.

O artigo afirma que a área potencial de distribuição na Argentina foi consideravelmente maior do que a observada em um relatório de 2019 publicado no site Categorización de los Mamíferos de Argentina. Enquanto isso, no Chile, a nova pesquisa encontra uma área de potencial distribuição estimada em mais de 150 mil quilômetros quadrados, que é muito maior do que os 27.600 km2 de ocupação observados em uma avaliação de 2015 publicada na revista Mastozoología neotropical. No Brasil, a presença do porco foi confirmada em 205 municípios que não haviam sido registrados anteriormente, aumentando o número total em 17,8%.

Essas variações podem ser explicadas pelas diferentes abordagens metodológicas adotadas e também pela “inclusão de um grande número de novos registros que abrangem um período de tempo mais longo”, afirma o artigo. Os autores acrescentam que, com essa nova abordagem, também foi possível identificar locais onde a espécie pode estar presente, mas ainda não foi detectada.

Além do artigo, Luciano La Sala, o principal autor do estudo, também disponibilizou um aplicativo dinâmico da Web com representações visuais dos resultados do estudo que os conservacionistas e os formuladores de políticas podem consultar prontamente.

“Sabemos que as invasões biológicas são mais bem controladas nos estágios iniciais. Quando os javalis são detectados em uma área protegida, é porque já atingiram um nível populacional problemático”, explica Alves da Rosa.

É justamente por isso que avaliações dessa natureza fornecem informações importantes para os gestores de áreas protegidas, possibilitando que eles adotem medidas de precaução para impedir o estabelecimento de novas populações de porcos selvagens, a fim de evitar mais perdas de espécies criticamente ameaçadas de extinção em áreas vulneráveis.

A camera trap image of a pig.
O estudo destacou que as paisagens protegidas e os parques nacionais da América do Sul correm um risco maior devido ao comportamento do porco selvagem. Foto: Clarissa Rosa/Serra Fina da Coleção do Instituto Alto Montana.

Impactos sociais e econômicos

O impacto ambiental não é a única preocupação levantada pela expansão desses porcos selvagens. Os impactos sociais e econômicos também são significativos. Alves da Rosa, que também trabalhou com as comunidades locais do entorno do Parque Nacional do Itatiaia, menciona que “quando começamos a perceber um impacto ambiental significativo, é porque o impacto social já é grande”.

Rosilene Cosmo Correa, também conhecida como Lena, é uma pequena agricultora que cultiva milho, batata e cana-de-açúcar e mora em Aiuruoca, cidade mineira localizada na Serra da Mantiqueira, em área de Mata Atlântica. É um lugar cercado por campos e florestas de araucária (Araucaria angustifolia), um dos locais favoritos dos porcos por conta da disponibilidade de pinhão.

Em uma ligação telefônica, Lena descreve sua primeira experiência lidando com porcos selvagens em 2015. “Eu estava cultivando uma plantação de cana-de-açúcar e tinha o sonho de comprar meu primeiro carro. Eu ia vender essa safra por 8 mil reais.” Em três dias de ataques contínuos de porcos selvagens, ela diz, “não sobrou nem uma única cana-de-açúcar”.

Depois desse episódio, Lena começou a trabalhar como empregada doméstica para ajudar na renda familiar. “Desde então, larguei tudo e comecei a sair para trabalhar, porque não tem mais como me sustentar em minha fazenda.”

Brazilian pine nuts
O pinhão que cresce nas florestas é um dos alimentos favoritos dos porcos. Foto: Fernando Jose Cantele via Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0).

A expansão dos porcos selvagens na região está provocando mudanças drásticas nos meios de subsistência dos pequenos produtores. Como os ataques são recorrentes, as pessoas se sentem desestimuladas a cultivar e recorrem mais às compras em supermercados, explica Lena. “No passado, tínhamos muitas coisas em casa. Se temos milho aqui nos campos, temos muito. Temos tudo; o milho é tudo. A cana também é a base de tudo.”

Ela também fala sobre o pinhão, um importante produto regional que está ficando cada vez mais difícil de coletar, pois os porcos selvagens o consomem rapidamente: “As mulheres que não trabalhavam fora costumavam colher os pinhões para vender, sabe? Muitos pinhões eram vendidos e isso ajudava muito durante o ano, porque com esse dinheiro as mulheres podiam fazer muitas coisas. Agora não tem mais pinhões para vender.”

Quando perguntada sobre como as pessoas de sua comunidade estão agindo, ela diz: “Algumas pessoas tomam a iniciativa e dizem: ‘Vou caçar um porco hoje’, mas não conseguem fazê-lo porque não têm equipamento ou treinamento adequado e também têm medo [de serem atacadas pelos porcos]”.

Davi Andrade Sampaio, que também é um pequeno produtor em Aiuruoca, explica que, ao perseguir um porco, um caçador pode precisar atravessar diferentes propriedades e isso pode resultar em conflito. Ele diz que alguns proprietários de terras são defensores dos direitos dos animais e são contra a caça; em alguns casos, eles podem até chamar os fiscais do Ibama. Nesse caso, os caçadores têm que chamar os cães de volta e se retirar.

Tanto Davi quanto Lena concordam com o fato de que é preciso adotar medidas maiores para controlar os porcos. Eles acham que seu problema ainda não é amplamente reconhecido e temem as consequências futuras da rápida dispersão dos porcos em sua região.

Para gerenciar com eficácia as populações de porcos selvagens, é essencial uma compreensão abrangente da interação entre as áreas protegidas e rurais, pois os porcos selvagens se deslocam e circulam entre esses dois ambientes. As áreas protegidas fornecem abrigo para os porcos selvagens, enquanto as áreas rurais servem como fontes abundantes de alimentos para seu sustento. Como resultado, os gestores de conservação e os agricultores que vivem perto de áreas protegidas devem coordenar esforços para resolver o problema.

A wild pig wallowing in the mud.
Um porco selvagem chafurdando na lama. As áreas protegidas fornecem abrigo para os porcos selvagens, enquanto as áreas rurais servem como fontes abundantes de alimento para sua subsistência. Foto: Bernard Dupont via Flickr (CC BY-SA 2.0).

Desafios e possibilidades para o controle de porcos selvagens

De acordo com Alves da Rosa, a erradicação dos porcos selvagens é utópica e só ocorre com sucesso em ilhas. Para minimizar o problema, ela diz, pesquisadores, gestores e comunidades locais devem trabalhar juntos.

No Brasil, o poder público não tem condições financeiras, técnicas e logísticas para manejar efetivamente os javalis em áreas protegidas. Nessas condições, o ônus recai inteiramente sobre os caçadores autônomos. “As áreas protegidas são dedicadas principalmente à conservação da biodiversidade, então como deixamos os caçadores dentro delas?”, diz ela.

Alves da Rosa enfatiza que, antes de introduzir caçadores em áreas protegidas, é fundamental estabelecer um relacionamento sólido e confiável. Além disso, o manejo de javalis exige mais do que apenas o controle de sua população dentro das áreas protegidas. Também é necessário um gerenciamento eficaz nas áreas vizinhas para garantir medidas de controle abrangentes.

Outra preocupação que ela levanta é o orçamento limitado dentro das áreas protegidas, que muitas vezes leva os gestores a priorizar o controle de javalis somente quando a situação já está fora de controle. Idealmente, o gerenciamento eficaz deveria ser uma prioridade desde os estágios iniciais da invasão. Os sistemas de detecção precoce e o gerenciamento proativo da população seriam a abordagem ideal para resolver o problema antes de que se agrave. Entretanto, a realidade atual está longe de alcançar esse cenário.

A wild pig digging with its snout.
Um porco selvagem cavando com o focinho em Mato Grosso. O manejo de javalis exige mais do que apenas o controle de sua população em áreas protegidas. Foto: Bernard Dupont via Flickr (CC BY-SA 2.0).

“Então, o que acontece?

A presença de porcos selvagens na América do Sul está se tornando uma preocupação séria não apenas para os conservacionistas, mas também para as pessoas que vivem em áreas rurais. A expansão dos porcos selvagens, apesar de ser um problema internacionalmente reconhecido, continua sem solução e sem reconhecimento local.

Os pesquisadores mais uma vez observam seus impactos potencialmente prejudiciais sobre a biodiversidade regional em áreas já ameaçadas, como a Mata Atlântica e o Cerrado. Avaliações desse tipo fornecem informações cruciais para gestores, cientistas, formuladores de políticas públicas e conservacionistas, que podem realocar e reforçar seus esforços para proteger áreas de maior risco.

Os pequenos agricultores se encontram em uma situação difícil, pois não conseguem lidar com essa questão sozinhos, sem o apoio das autoridades, diz Lena. “Não estamos em posição de nos defender. Tudo o que fazemos é como pequenos produtores. Portanto, se não tivermos o dinheiro e não produzirmos, como faremos alguma coisa? E então, o que acontece? Nada!”

 

Fonte Mongabay

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Trajano Xavier

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