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Recheados de “carbono azul”, manguezais ganham destaque no combate às mudanças climáticas

Recheados de “carbono azul”, manguezais ganham destaque no combate às mudanças climáticas
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Nascido e criado na lama, com um pé na terra e outro no mar, hora seco, hora submerso pelo incansável vai-e-vem das marés, o manguezal é um ecossistema acostumado a mudanças e adversidades. Nem mesmo ele, porém, está imune ao impacto das mudanças climáticas que açoitam o planeta com intensidade cada vez maior. “O manguezal aguenta quase tudo, mas até ele tem um limite”, diz a professora Yara Schaeffer Novelli, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, matriarca acadêmica da ecologia de manguezais no Brasil. Modificações ambientais que costumavam ocorrer ao longo de milhares de anos estão ocorrendo, agora, num único ciclo de vida, impulsionadas pela ação humana. “São alterações muito grandes num tempo muito curto. Não há ecossistema que suporte isso”, alerta a professora ao Jornal da USP.

Isso é má notícia não só para os bichos e plantas desses ecossistemas costeiros, mas também para os seres humanos em geral, incluindo aqueles que nunca pisaram nem planejam afundar um dia os pés na lama de um manguezal. Distribuídos ao longo das franjas de quase toda a linha de costa brasileira — do extremo Norte do Amapá até meados do litoral de Santa Catarina — os manguezais cobrem apenas 0,16% do território brasileiro, mas possuem uma relevância socioambiental que se projeta muito além de sua extensão territorial.

Entre os vários serviços ambientais gratuitos que eles prestam à espécie humana, um que vem ganhando destaque nos últimos anos é a sua impressionante capacidade de estocar “carbono azul” — um termo colorido usado para se referir ao carbono de ecossistemas marinhos e costeiros, em contraste com o “carbono verde” associado às florestas e outros ecossistemas terrestres. Estimativas indicam que um hectare de manguezal no Brasil pode armazenar entre duas e quatro vezes mais carbono do que um mesmo hectare de outro bioma qualquer — incluindo a floresta amazônica —, segundo um estudo publicado no início de 2022 na revista Frontiers in Forests and Global Change.

A maior parte desse carbono fica estocada no solo lamoso do manguezal, onde a ausência de oxigênio retarda, ou até impede completamente, a decomposição da matéria orgânica que está soterrada ali. O resultado é um reservatório natural de longo prazo que pode ser encarado tanto como um tesouro enterrado quanto uma bomba-relógio prestes a ser detonada, dependendo do que acontecer com esses ecossistemas daqui para frente. Se os manguezais forem protegidos e esse carbono permanecer no solo, ótimo! Se eles forem destruídos e esse carbono for parar na atmosfera, será como borrifar gasolina no fogo do aquecimento global.

“É um reservatório que precisa ser deixado quieto”, resume o ecólogo brasileiro André Rovai, autor do estudo na Frontiers in Forests and Global Change e pesquisador assistente na Universidade do Estado da Louisiana, nos Estados Unidos. Não só por conta do que já está estocado nele, mas por todo o carbono que ainda pode ser depositado ali. Além de ótimos guardadores, os manguezais também são excelentes sorvedouros de carbono, tanto por meio do crescimento de suas florestas, que retiram gás carbônico da atmosfera, quanto pelo acúmulo da matéria orgânica que desce pelos rios e fica depositada na sua lama, como se ela fosse um filtro.

“O manguezal é um meio do caminho entre a terra e o mar”, descreve Rovai. “Ele produz sua própria biomassa e ainda armazena parte do carbono que flui de dentro do continente.” Estimativas globais, segundo ele, sugerem que os manguezais podem sequestrar quase 1 bilhão de toneladas de carbono por ano, o equivalente a 10% de todo o carbono emitido anualmente no mundo pela espécie humana (10 bilhões de toneladas).

“Os manguezais são um grande hotspot de carbono”, reforça o professor Roberto Barcellos, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que nos últimos anos passou a se dedicar intensamente à pesquisa do carbono azul. “Não existe ecossistema que acumule tanto carbono quanto eles.”

A quantidade de carbono por hectare pode variar bastante de um lugar para outro, dependendo das particularidades ambientais de cada localidade. Afinal de contas, “cada mangue é um mangue; não existem dois manguezais iguais”, costuma dizer a professora Yara. Há muitas variáveis que ainda precisam ser melhor estudadas para encaixar os manguezais com maior precisão científica nos inventários nacionais e na arquitetura global dos fluxos de carbono, incluindo suas emissões naturais de dióxido de carbono, metano e outros gases naturais do efeito estufa.

Mas uma coisa que já fica claríssima nos dados, segundo os especialistas, é que os manguezais são uma peça importante no quebra-cabeça das mudanças climáticas globais. Uma peça que precisa ser não apenas protegida, como multiplicada. “Preservar os manguezais é essencial, mas não só isso”, destaca Barcellos. “É preciso restaurar o que já foi perdido e criar novas áreas de manguezal onde for possível.”

Ameaça climática

O Brasil abriga uma das maiores áreas de manguezal do planeta: 1,4 milhão de hectares, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, publicado em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Cerca de 80% desses ecossistemas estão concentrados em três Estados (Maranhão, Pará e Amapá) e 87% estão inseridos em alguma unidade de conservação, como parques, reservas ou áreas de proteção ambiental (APAs). Historicamente, estima-se que 25% das áreas originais de manguezal no Brasil já tenham sido suprimidas desde o início do século 20, segundo o Atlas.

Esses dados referem-se ao ecossistema manguezal como um todo, incluindo suas florestas (bosques de mangue) e outras feições diretamente associadas a elas, como as planícies alagadas e os apicuns, que são áreas mais secas e com menor cobertura vegetal, porém igualmente relevantes do ponto de vista ecológico do ecossistema.

Olhando especificamente para as formações florestais, o Brasil tem pouco mais de 1 milhão de hectares de bosques de mangue distribuídos ao longo de sua zona costeira, segundo o mapeamento mais recente da organização MapBiomas, que traz dados atualizados até 2021. Comparado a 2001, isso representa uma redução de 2%. Comparado a 1985, porém, houve um aumento de 4% — números que refletem tanto uma dinâmica de transformações naturais dos manguezais quanto pressões antrópicas (de origem humana) às quais eles estão submetidos. Excluindo perdas e ganhos mais periféricos, o MapBiomas estima que 84% da cobertura de florestas de mangue no Brasil permaneceu estável nesses últimos 37 anos.

“Entre mortos e feridos no cenário ambiental do Brasil, os manguezais são um exemplo muito positivo de resiliência”, diz o coordenador técnico de mapeamento de zonas costeiras do MapBiomas, Cesar Diniz. Três quartos dessas florestas de mangue (75%) estão dentro de áreas legalmente protegidas, segundo a publicação.

A má notícia é que nada disso é garantia de imunidade às mudanças climáticas que já estão em curso e tendem a se agravar muito mais ainda nos próximos anos. As principais ameaças são a elevação do nível do mar e o aumento — tanto na frequência quanto na intensidade — da ocorrência de eventos climáticos extremos, como ressacas, tempestades e vendavais, com capacidade para submergir, erodir e agredir esses ambientes costeiros que são ocupados pelos manguezais.

Em última instância, segundo os especialistas, a capacidade dos manguezais de sobreviver a esse intenso bombardeio climático dependerá da disponibilidade de áreas para as quais eles possam migrar em busca de condições mais favoráveis, à medida que seus territórios atuais são redesenhados no mapa pelo avanço das marés.

Simplificando as coisas: as árvores de mangue são as únicas capazes de sobreviver em áreas de influência da maré, por causa da alta salinidade do ambiente que é inundado pela água do mar. Qualquer outra vegetação terrestre morre. Sendo assim, à medida que o nível do mar aumenta e as ondas avançam sobre a linha da costa e os estuários, a fronteira de ocupação dos manguezais, teoricamente, também se desloca em direção à terra firme, puxada pelo alcance das marés. Se por um lado eles podem ser devorados pela erosão, por outro podem se expandir continente adentro. Isto é, se não houver uma estrada, indústria, condomínio, montanha ou tanque de camarão no meio do caminho para impedir sua passagem.

“Se o manguezal não tiver espaço para se acomodar, ele acaba”, resumiu a geóloga e oceanógrafa Célia Souza, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (IPA-Sima) do Estado de São Paulo, em um seminário sobre o tema realizado em julho deste ano: Manguezais na década dos oceanos – Manejo, recuperação e participação de pescadores artesanais e catadores. “Infelizmente, as planícies costeiras são as melhores para construção civil”, acrescentou a geógrafa Viviane Buchianeri, especialista em manejo de áreas protegidas e fiscalização ambiental da Fundação Florestal (FF), vinculada ao governo paulista.

Ou seja, o risco de conflito entre manguezais migrantes e infraestrutura humana instalada é grande, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, onde as taxas de ocupação da região costeira são maiores e as áreas remanescentes de manguezal estão bastante fragmentadas. Já na costa Norte do País (Maranhão, Pará e Amapá), onde está concentrada a maior parte dos manguezais brasileiros, a movimentação tende a ser mais pacífica, em função da menor densidade demográfica nas áreas de mangue daquela região.

“Os efeitos podem ser variados. É provável que haja expansão de manguezais em alguns lugares e retração, em outros”, observa Clemente Coelho Junior, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco. O desfecho, segundo ele, vai depender de diversas variáveis climáticas, oceanográficas e geográficas. Entre elas: o grau e a velocidade de elevação do nível do mar, a quantidade de sedimentos que chegam pelos rios, as taxas de sedimentação e a topografia de cada localidade.

Em grande parte do litoral paulista, por exemplo, além de toda a ocupação humana já consolidada, existe uma muralha natural gigantesca bloqueando a passagem, que é a Serra do Mar. Os manguezais são capazes de muitas façanhas, mas não sobem montanhas. “Ali o manguezal está encurralado, não tem muito para onde fugir”, sentencia Coelho Junior.

“O mangue é resiliente, sim, mas a gente precisa ajudar nesse processo”, diz a professora Marília Lignon, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Registro, na região do Vale do Ribeira. Em muitos casos, acontece justamente o oposto: “Estamos piorando muito a capacidade dos manguezais de se ajustar a essas alterações climáticas”, ressalta a professora — lembrando que as mudanças estão acontecendo de forma muito mais rápida e intensa hoje do que no passado.

Lignon lidera um grande grupo de pesquisa multidisciplinar e multi-institucional chamado Monitoramento Integrado de Manguezais, que rastreia o estado de saúde e a dinâmica ecológica de diversas parcelas de mangue nas regiões de Iguape e Cananeia, no litoral Sul de São Paulo.

A reportagem do Jornal da USP acompanhou a equipe da professora num trabalho de campo em agosto, no estuário de Cananeia; uma região de paisagens belíssimas e com uma abundância de vida selvagem impressionante, protegida por dois parques estaduais (da Ilha do Cardoso e do Lagamar de Cananeia) e uma reserva extrativista (a Resex do Mandira), onde convivem várias comunidades tradicionais de pescadores, marisqueiros e criadores de ostras. Quase sempre trabalhando dentro da água ou afundadas na lama, a professora e suas alunas medem a altura e o diâmetro de centenas de árvores de mangue, distribuídas por uma rede de parcelas de monitoramento previamente estabelecida. “Venho aqui desde que esse mangue tinha um metro de altura; é como se fosse um filho que eu vi crescer”, descreve Lignon, em meio a um bosque formado por árvores de mangue-vermelho (Rhizophora mangle) que chegam a 10 metros de altura.

As pesquisadoras anotam a espécie de cada árvore, se ela está viva ou morta, inteira ou quebrada, e medem a salinidade do solo, entre outros parâmetros que permitem dizer, por exemplo, se aquela floresta está crescendo ou definhando, ganhando ou perdendo biomassa (matéria orgânica vegetal). E como biomassa é feita essencialmente de carbono, isso permite inferir, também, se os manguezais estão perdendo ou acumulando carbono ao longo do tempo. O diagnóstico varia entre parcelas e regiões, mas uma mensagem importante que emerge dos dados é a de que os manguezais que estão dentro de áreas protegidas e menos expostos a agressões humanas são mais saudáveis, mais resistentes, acumulam mais carbono e se recuperam mais rápido de danos causados por eventos climáticos extremos, como tempestades ou vendavais, que por vezes destroem bosques de manguezal inteiros.

O trabalho começou no início dos anos 2000, quando Lignon ainda era aluna de pós-graduação no IO — orientada  pela professora Yara Novelli, assim como a maioria dos especialistas ouvidos para esta reportagem —, e se transformou num dos projetos mais importantes e mais longevos de monitoramento de manguezais no Brasil.  “Temos que entender que as florestas de mangue são nossas aliadas no combate às mudanças climáticas e precisam ser protegidas. Isso é fundamental”, alerta ela.

Os manguezais ocupam apenas 0,1% do território do Estado de São Paulo, segundo o mais recente Inventário da Cobertura Vegetal Nativa do Estado. São 24.574 hectares, divididos quase que exatamente entre o litoral Sul e a Baixada Santista, e apenas 195 hectares no litoral Norte. São ecossistemas que vivem “numa encruzilhada”, segundo Marco Nalon, diretor do Departamento Técnico-Científico do IPA-Sima: ao mesmo tempo que protegem contra as mudanças climáticas, são afetados por elas. “Não bastasse isso, ocorre a pressão humana”, destacou Nalon, no seminário de julho, promovido pela secretaria.

A boa notícia é que 68% desses manguezais paulistas estão dentro de áreas protegidas, incluindo áreas de uso sustentável e de proteção integral. Ainda assim, é um cenário que exige cuidados e atenção constante do poder público. Pelos critérios da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), segundo Nalon, os manguezais de São Paulo podem ser considerados ecossistemas “em perigo de colapso”. A estimativa é de que mais de 50% da cobertura original de manguezais do Estado já foi perdida.

A região mais conflituosa é a da Baixada Santista, que abrange Santos e outros oito municípios da parte mais central do litoral de São Paulo, entre Peruíbe e Bertioga. A região preserva grande parte de sua vegetação nativa ainda intacta, porém fortemente pressionada por atividades humanas, principalmente no entorno de Santos. O município tem mais de 430 mil habitantes concentrados sobre uma ilha com menos de 40 quilômetros quadrados, quase toda ela ao nível do mar e cercada por portos, marinas, indústrias e demandas sociais não atendidas que, muitas vezes, deságuam na ocupação desordenada de áreas de manguezal. Num extremo estão as palafitas — favelas construídas sobre estacas de madeira na lama do mangue. No outro, toneladas e mais toneladas de concreto e aço da maior infraestrutura portuária da América Latina.

A perda desses ecossistemas tem um impacto significativo na drenagem natural da ilha e na sua capacidade de resistir aos impactos das mudanças climáticas, segundo o engenheiro Eduardo Hosokawa, chefe da Seção de Mudança do Clima da Secretaria de Meio Ambiente e coordenador da Comissão Municipal de Adaptação à Mudança do Clima (CMMC) de Santos. Em condições normais, os manguezais funcionam como barreiras naturais de proteção contra ressacas e mitigação da erosão costeira. Sem eles, a cidade fica mais vulnerável às intempéries climáticas e ainda precisa gastar fortunas com projetos de dragagem, drenagem e construção de barreiras  artificiais.

Sequência de imagens do Google Earth mostram expansão de uma comunidade na Vila Ema, em São Vicente, sobre área de manguezal – Elaboração: Herton Escobar / Jornal da USP

Para entender o problema é fácil: basta caminhar pela orla da Ponta da Praia de Santos e ver que grande parte da faixa de areia de um dos pontos mais turísticos da cidade literalmente desapareceu do mapa nos últimos 50 anos. “As ressacas, que aconteciam de tempos em tempos, agora estão muito mais frequentes”, destaca Hosokawa. Não por acaso, a proteção e restauração de manguezais são uma das ações estratégicas previstas no novo Plano de Ação Climática de Santos, lançado em janeiro de 2022.

“Um dos serviços mais importantes que o mangue traz é justamente o poder que suas raízes têm de reter sedimentos e, com isso, impedir a erosão da linha de costa estuarina (…) e manter o balanço sedimentar da zona costeira em equilíbrio”, disse a pesquisadora Célia Souza, do IPA-Sima, no seminário promovido pela secretaria estadual em julho. “E aí a gente inclui as praias também nisso.”

Fora do núcleo portuário de Santos, a Baixada Santista ainda abriga grandes extensões de ecossistemas manguezais que, além de estocarem carbono, prestam uma série de outros serviços ecossistêmicos e ambientais extremamente importantes para a região. “A paisagem da Baixada é um mosaico muito grande. Tem de tudo aqui, desde manguezais altamente impactados até altamente preservados”, diz o pesquisador Ricardo Menghini, doutor em Oceanografia Biológica pelo Instituto Oceanográfico (IO) da USP e professor da Universidade Paulista (Unip).

Uma das principais estratégias em estudo para financiar o plantio e a restauração de manguezais na região é a comercialização de créditos vinculados ao carbono que pode ser absorvido por esses ecossistemas. Se o negócio der certo, “será muito bem-vindo”, diz o oceanógrafo Fabrício Gandini, do Instituto Maramar, uma organização social sediada em Santos. Mas é essencial que esses recursos sejam revertidos, também, em favor das comunidades que dependem dos manguezais para a sua sobrevivência —  algo que não tem ocorrido de maneira eficaz, segundo ele, com os recursos de compensação ambiental oriundos do setor portuário. Apesar de todas as dificuldades, segundo Gandini, há cerca de mil famílias que ainda tiram seu sustento diretamente dos manguezais na Baixada Santista, por meio da pesca de peixes, mariscos e caranguejos. Assim como os próprios manguezais, as comunidades tradicionais que vivem em sinergia com eles são extremamente resilientes.

“Na hora que não tiver mais gente pescando no manguezal, pode escrever: esse manguezal está condenado”, disse o consultor ambiental Geraldo Eysink, que há mais de três décadas trabalha com plantio e restauração de manguezais. Nenhum esforço de recuperação desses ecossistemas tem chance de dar certo, segundo ele, se não envolver os pescadores: “os verdadeiros bioinformantes do manguezal”.

Serviços ecossistêmicos

O armazenamento de carbono é apenas um dos muitos serviços ecossistêmicos e socioambientais prestados à humanidade pelos manguezais. Seu papel mais famoso, talvez, seja o de berçário da vida marinha.

Cientistas estimam que cerca de três quartos (entre 70% e 80%) das espécies marinhas de valor comercial para a pesca utilizam o manguezal em alguma fase do seu desenvolvimento (para procriar, se alimentar ou crescer) e, portanto, dependem desse ecossistema para sobreviver — mesmo que, no fim da linha, sejam pescadas muito longe dali. “Não corte o mangue porque pode morrer a vida que tem dentro do mar”, diz o refrão de uma música do educador Carlinhos de Tote, do grupo Cantarolama, em Maragogipe (BA), que há mais de quatro décadas trabalha pela preservação dos manguezais no Brasil. (Clique aqui para ouvir a música, apresentada no seminário Manguezais na Década dos Oceanos.)

Robalo, tainha e camarão-sete-barbas são alguns exemplos de espécies marinhas que se criam dentro do manguezal; além de tantas outras que podem não ter valor comercial para a pesca, mas são igualmente valiosíssimas para a saúde dos ecossistemas costeiros e marinhos. O gigantesco mero (Epinephelus itajara), uma espécie criticamente ameaçada de extinção no Brasil, por exemplo, passa os primeiros anos de vida no manguezal antes de migrar para o oceano na vida adulta.

“O manguezal para nós é um mundo diferente, né? Porque tudo no manguezal se cria; o peixe, o camarão, as ostras que a gente come e vende, se cria tudo no manguezal. É o nosso berçário, né?”, diz o pescador e guia turístico Sergio Neves, um legítimo caiçara da Ilha do Cardoso, no litoral Sul de São Paulo.

Mesmo dentro de uma unidade de conservação, com manguezais extremamente saudáveis, Neves percebe claramente os efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas sobre a paisagem, com impactos diretos sobre o ecossistema e a vida das comunidades locais, que tiram da natureza o seu sustento. Tempestades, ventanias e outros fenômenos meteorológicos extremos estão cada vez mais frequentes, intensos e destrutivos, segundo ele. A elevação do nível do mar fez aumentar o alcance das marés e a força dos ventos, principalmente nas frentes frias, que também parecem chegar com uma frequência cada vez maior. As ondas erodem a costa e jogam areia do oceano para dentro do estuário, soterrando os manguezais.

Em 2018, a entrada de uma forte frente fria, aliada a uma maré de lua cheia, sacramentou o rompimento de um trecho de praia na Enseada da Baleia, no extremo sul do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, que resultou na abertura de uma nova barra (passagem conectando o oceano e o estuário) e na morte de um grande trecho de manguezal bem à frente dela. “Foi um processo erosivo natural, mas ampliado por um evento extremo”, avalia Lignon.

“Com isso, o que acontece é que diminui a fartura, né? Diminui o peixe; o camarão que se reproduz ali deixa de se reproduzir”, explica Neves. “Não tendo esse berçário, vai diminuir (a pesca) no marzão lá fora também”, completa ele. Palavras da sabedoria caiçara, em perfeita sintonia com a ciência.

“Os grandes defensores dos manguezais hoje, sem dúvida, são as comunidades tradicionais organizadas”, que entendem perfeitamente a importância desses ecossistemas, diz o professor Coelho Junior, da UPE. Por isso a preservação dos manguezais é uma das principais bandeiras de gestão da Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais, a maior unidade de conservação marinha do Brasil, que se estende por 120 quilômetros entre o litoral Norte de Alagoas e Sul de Pernambuco, região onde Coelho Junior atua desde que concluiu a pós-graduação no IO, em 2004. Além de atuar como berçários, os manguezais funcionam como um filtro biológico, bloqueando a passagem de sedimentos e poluentes oriundos do continente que, se chegassem ao mar, poderiam comprometer a saúde dos ecossistemas recifais marinhos.

Outro patrimônio socioambiental que pode ser colocado em risco pelas mudanças climáticas é a cata do caranguejo, uma das atividades mais icônicas, tradicionais, culturalmente e economicamente importantes associadas aos manguezais. Duas das principais espécies que são alvo desse tipo de pescaria — o guaiamum (Cardisoma guanhumi) e o caranguejo-uçá (Ucides cordatus) — dependem das áreas mais internas e menos inundadas dos manguezais para viver e se reproduzir.

O guaiamum é uma espécie ameaçada de extinção no Brasil, que vive justamente nessa zona de transição entre as florestas alagadas de mangue e a terra firme, onde ocorrem os chamados apicuns, ou planícies hipersalinas, que são parte do ecossistema manguezal, mas são inundadas pela maré com menos frequência e não comportam vegetação de grande porte. São áreas cobiçadas para a construção de tanques de camarão e produção de sal, entre outros empreendimentos. Já o caranguejo-uçá vive na lama dos bosques de mangue, mas também utiliza essas zonas de transição mais secas como berçários, segundo o biólogo Anders Schmidt, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e coordenador da Rede de Monitoramento de Andadas Reprodutivas de Caranguejos. “É lá que a gente encontra os filhotes de caranguejo, os indivíduos que estão chegando na população”, explica o professor.

Com a elevação do nível do mar, a tendência é que esses apicuns se transformem em florestas de mangue e que essa zona de transição mais seca se desloque em direção à terra firme, onde o risco de bater de frente com construções humanas e acabar desaparecendo é enorme. “Não tendo esse backup de deslocamento você pode acabar perdendo essas zonas pouco inundadas, que é onde se renova a população de caranguejo”, completa Schmidt. “É uma área extremamente crítica para a sobrevivência dessas espécies.”

Segundo o MapBiomas, a área total de apicuns no Brasil encolheu 14% entre 2001 e 2021 – de 63 mil para 54 mil hectares.

O colapso populacional dessas espécies — como já vem acontecendo com o guaiamum, em função da sobrepesca e da perda de habitat — seria um  desastre para milhares de famílias de extrativistas que dependem desses crustáceos para o seu sustento. Pessoas como Antonio Carlos Borges Amaral, o “Toninho” da Ponta de Areia, em Caravelas (BA), que há mais de 20 anos ganha a vida pescando e catando caranguejos nos manguezais do Sul da Bahia. “O mangue é tudo pra mim. O sustento da minha família vem todo do manguezal”, resume o extrativista, de 40 anos, casado e pai de três filhos.

Antonio Carlos Borges Amaral, o “Toninho”, ganha a vida catando caranguejos nos manguezais da Reserva Extrativista de Cassurubá, em Caravelas, sul da Bahia. Ele pratica uma técnica conhecida como “gancho”, que utiliza um vergalhão de aço para “fisgar” o caranguejo debaixo da lama – Foto: Herton Escobar / USP Imagens

A reportagem do Jornal da USP acompanhou Toninho em um dia típico de trabalho na Reserva Extrativista de Cassurubá, uma área protegida de 100 mil hectares onde só os extrativistas locais podem atuar, de acordo com regras estabelecidas num plano de manejo. É uma das áreas mais produtivas para a pesca de caranguejo-uçá no Brasil, de onde sai grande parte dos crustáceos que vão abastecer mercados e restaurantes da região.

Toninho é um dos poucos extrativistas locais que ainda prefere catar o caranguejo pelo método tradicional, enfiando a mão na lama. Ele usa uma técnica conhecida como “gancho”, que consiste em manipular um vergalhão de aço, dobrado na ponta, para cutucar o bicho no fundo da toca e puxá-lo até a superfície — uma variação do método mais rústico de “braceamento”, em que o caranguejo é capturado diretamente com a mão. (Mais recentemente, a maioria dos extrativistas migrou para uma técnica polêmica conhecida como “redinha”, que utiliza fibras de saco de rafia como armadilha para enredar os caranguejos na entrada das tocas.)

A maneira com que Toninho lê os sinais na superfície da lama e “sente” o animal no interior da toca é impressionante; é como se o vergalhão fosse uma extensão tátil do seu braço. “Tá beliscando!”, anuncia ele, ofegante, ao ouvir os cliques da pinça do caranguejo atacando o gancho. Aí ele segue cutucando e puxando, até o bicho sair do buraco — que pode chegar a dois metros de profundidade.

O caranguejo-uçá é um bicho de aparência ameaçadora, mas que Toninho manipula com a tranquilidade de quem está segurando um bicho de pelúcia. Em três horas de trabalho, ele pega mais de 20 caranguejos; o suficiente para alimentar sua família e ganhar um dinheirinho. “Tenho muito orgulho do que eu faço”, afirma Toninho, que vive numa casa de alvenaria próxima ao pier da Ponta de Areia, onde ele amarra sua batera (embarcação de madeira com motor de popa, típica da região). “Se eu tivesse outro trabalho eu não teria o que tenho hoje através do mangue. Graças a Deus tem isso aqui pra gente se manter ainda.”

“Essa faixinha de território sustenta a vida de milhões de pessoas”, diz a professora Yara, do IO, olhando para um mapa dos manguezais do Brasil. Perguntada no seminário de julho, em São Paulo, sobre qual seria a medida mais prioritária para a conservação dos manguezais no Estado, ela respondeu de forma categórica: “Vontade política. O resto já está feito; a mesa está posta”.

*Essa reportagem foi produzida com apoio de uma bolsa de R$ 8 mil do edital Conexão Oceano de Jornalismo Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário em parceria com a Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da Unesco, a favor da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. Os recursos foram integralmente empenhados na produção da reportagem e a Fundação Grupo Boticário não teve nenhuma influência sobre a seleção de fontes, produção ou edição do conteúdo jornalístico produzido.

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Trajano Xavier

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