Animal é um refugiado ambiental que foge da destruição de seu Cerrado nativo, que acelerou nos últimos anos, e procura refúgio nos campos das bordas do que sobrou da Mata Atlântica
Batizado em homenagem ao santo protetor dos animais e a um ambientalista que morreu por defender a natureza, Chiquinho caminhou rumo ao desconhecido na última terça-feira. O jovem lobo-guará foi resgatado, em julho, à beira da morte, por fome e doença, em Aperibé, no Norte do Estado do Rio de Janeiro. Tratado e alimentado, recuperou-se. Foi solto por seus salvadores na Serra da Concórdia, em Valença, na borda de uma das últimas florestas do Médio Paraíba que, como ele, são sobreviventes.
Chiquinho tem destino incerto. Não se sabe de onde veio nem para onde vai. Carrega a sina de sua espécie, que se tornou refugiada ambiental. É mistério como ele foi parar em Aperibé, longe de seu habitat natural, o Cerrado. Na Concórdia, se espera que tenha encontrado um lar.
O lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é um refugiado ambiental porque foge da destruição de seu Cerrado nativo, que acelerou nos últimos anos, e procura refúgio nos campos das bordas do que sobrou da Mata Atlântica, dizem cientistas.
Para sobreviver, Chiquinho precisou do ser humano. E, como as pessoas, tem o desafio a se adaptar às dificuldades de tempos de mudança. O nome é uma homenagem a São Francisco e ao ambientalista Chico Mendes (1944-1988).
Esse é o segundo lobo resgatado por Dário em Aperibé. O primeiro foi a fêmea Jabuticaba, salva por ele em 2021 e que ganhou esse nome porque foi encontrada com a pata presa nos galhos de uma jabuticabeira. Aperibé nem fica na área do Desengano, mas as pessoas da região recorrem a Dário quando há animais silvestres em perigo. Por que os lobos foram para Aperibé é outra incógnita.
O lobo-guará é um animal solitário, mas Chiquinho está longe de estar sozinho em seu drama. A espécie tem sido encontrada com frequência cada vez maior no Estado do Rio, destaca a especialista em lobos, Cecília Bueno, professora da Universidade Veiga de Almeida e pesquisadora colaboradora do Museu Nacional/UFRJ.
Originário dos campos abertos do Cerrado e dos Pampas, o lobo se espalhou para além de seu território para áreas degradadas da Mata Atlântica, da Amazônia e do Pantanal. Foi expulso de seu habitat pela conversão dos campos nativos em plantações, sobretudo, de soja.
Nas bordas da Mata Atlântica encontra campos onde havia florestas. Não são lugares ricos em água e biodiversidade, mas permitem sua sobrevivência. O fenômeno ocorre há décadas, mas se acelerou nos últimos anos, frisa Bueno.
Porém, fora de seu território, os lobos estão sujeitos a atropelamentos, ao ataque de cães e de seres humanos, além de contrair doenças. Ao ser capturado pelo fazendeiro que chamou Dário, Chiquinho estava pele e osso. Desnutrido e com sarna avançada. Dário o pegou e o levou para os cuidados de Jeferson Pires, chefe do Centro de Reabilitação de Animais Selvagens da Universidade Estácio de Sá, em Vargem Pequena, no Rio. Lá ele ganhou peso — passou de 16 para 24 quilos — e recuperou a saúde. Pires estima que ele tenha cerca de três anos, um adulto jovem, pronto para se reproduzir.
Dário explica que, para a soltura, era preciso uma área que oferecesse um ambiente capaz de sustentar lobos e fosse mais protegida. A escolhida foi uma área da Embrapa contígua ao Parque Estadual da Serra da Concórdia e ao Refúgio da Vida Silvestre do Médio Paraíba.
Quando Dário e Jeferson abriram a caixa de transporte, Chiquinho saiu com compreensível pressa. Correu um pouco, mas logo parou. Virou-se e fitou as pessoas que o observavam. Mirou a paisagem do novo lar. Viu montanhas com florestas, uma pastagem, com vacas e alguns cavalos.
Farejou o ar. Virou as orelhas para escutar o que o vento trazia. Deu os primeiros passos e saiu devagar por uma trilha que beira a mata até desaparecer por trás de um morro. Seguiu para um lugar inteiramente novo para ele. E um destino incerto para os animais que tentam se adaptar a um futuro de mudança produzida pela mão humana. Ele vai morar onde a floresta encontra o pasto, um lugar onde um dia talvez escute o uivo de uma loba, espera Pires. Talvez até Jabuticaba, libertada não muito longe dali, acrescenta Dário.
Maurício Macedo, gestor do parque da Concórdia, conta que há avistamentos de outros lobos-guarás no parque e no refúgio, bem como em áreas vizinhas. O lobo é um migrante do antropoceno, a era dos homens, cuja paisagem foi intensamente transformada. As florestas do Médio Paraíba são em sua maioria mata que se regenerou após as plantações terem sido abandonadas. Têm, em média, 50 anos de idade. Em muito do que era floresta há campos, cuja paisagem lembra a do Cerrado. Pires está otimista, embora não haja muita comida no campo dominado pelo capim colonião, praga invasora que infesta lugares de antigas pastagens. O Cerrado tem roedores silvestres e aves que vivem no solo, como perdizes e codornas, apreciados pelo guará. Ele também come plantas, 50% de sua alimentação é vegetal. Porém, os campos de bordas da Mata Atlântica são pobres e o guará precisa andar muito para comer. Dos quatros lobos mortos por atropelamento autopsiados por Bueno este ano, a desnutrição era visível.
O lobo-guará late e tem o tamanho de cachorro grande, mas não é parente muito próximo dele. É tímido, nada agressivo, ajuda a controlar os ratos. Na floresta nunca entra, pois se perde. A orelhas grandes são para ouvir melhor suas presas. As patas longas permitem que enxergue longe. A pelagem ruiva e dourada é da cor das campinas. A boca grande é para sobreviver.
Fonte: Um Só Planeta