Um refúgio para salvar o sauim-de-coleira
Pressionado pela expansão da região metropolitana de Manaus, a criação de uma área de proteção integral é considerada crucial para conservação deste ameaçado macaco amazônico
Nem tudo na Amazônia é sobre imensidões. Para o sauim-de-coleira, macaco amazônico ameaçado de extinção, seu lar é apenas uma minúscula fração da maior floresta tropical do mundo. Não bastassem os limites restritos, a vida do sauim está parcialmente sobreposta à região metropolitana de Manaus, no Amazonas, onde a urbanização avança veloz sobre a floresta. Cada vez mais encurralado pelo crescimento da capital amazonense, o sauim conta com poucas e insuficientes áreas protegidas para resguardar seu habitat – e seu futuro. Na corrida para manter as florestas do sauim de pé e garantir sua sobrevivência, especialistas defendem a urgência da criação de um Refúgio de Vida Silvestre focado na conservação do pequeno primata.
O sauim-de-coleira (Saguinus bicolor) vive apenas em uma pequena porção do estado do Amazonas, entre os municípios de Manaus, Itacoatiara e Rio Preto da Eva. São cerca de 8 mil quilômetros quadrados – o equivalente a menos de 1% do estado amazonense ou o tamanho da Região Metropolitana de São Paulo. É uma das menores áreas de distribuição geográfica conhecida entre os primatas brasileiros.
Para complicar, no meio do habitat do sauim, cresce Manaus, com uma população de mais de 2 milhões de habitantes – o município mais populoso da região norte e o 7º do país – e onde a urbanização crescente divide a floresta em retalhos. Os pesquisadores estimam que a espécie vem sofrendo uma perda de habitat de quase 250 km² por ano. Nesse ritmo, em 32 anos não terá sobrado nenhuma floresta para o sauim chamar de lar.
“Às vezes a gente fala 8.000 km² e dá impressão de ser uma área enorme, mas é uma área muito pequena para um primata amazônico e é uma área muito vulnerável, porque ela está sobreposta com a maior Metrópole Amazônica e com toda a área agropecuária dessa Metrópole, com duas grandes estradas, com mais duas grandes cidades. A segunda maior cidade do Amazonas que é Itacoatiara também está nessa área. Então é uma área que sofre uma grande pressão antrópica. E a gente não sabe o quanto essa área vai estar preservada ao longo do tempo”, alerta o analista ambiental do ICMBio, Diogo Lagroteria, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Amazônica.
Dentro desse limitado e disputado território há apenas três unidades de conservação de proteção integral, ou seja, com regras mais rígidas de preservação. São dois parques municipais e um estadual, que somados abrangem pouco mais de 100 hectares inseridos na área urbana de Manaus.
As principais UCs que existem no habitat do sauim são de uso sustentável, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista e as Áreas de Proteção Ambiental (APA) da Margem Esquerda do Rio Negro, todas da esfera estadual e situadas no limite oeste da distribuição do sauim. Em Manaus existem ainda quatro APAs municipais, uma reserva de desenvolvimento sustentável, uma reserva ecológica e um corredor ecológico. Além disso, no extremo leste da distribuição do sauim, em Itacoatiara, está a Terra Indígena Rio Urubu, com 27 mil hectares, habitada pela etnia Mura.
Outros importantes maciços florestais seguem de pé em propriedades particulares como a Reserva Florestal Adolpho Ducke, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), com 10 mil hectares; o Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), do Exército, com cerca de 100 mil hectares, a maior área contínua de floresta dentro do habitat do sauim; e o campus da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com cerca de 600 hectares.
O Refúgio proposto possui cerca de 15 mil hectares integralmente situados no município de Itacoatiara, ao leste da distribuição da espécie, entre os rios Preto da Eva e Urubu. A localização foi definida como estratégica e prioritária durante o levantamento dos pesquisadores do PAN porque é uma região com florestas ainda bem preservadas, porém em grande parte desprotegidas, e que possuem um papel importante para garantir a conexão entre os blocos florestais ao longo do habitat do sauim-de-coleira.
O objetivo é manter a área do sauim funcionalmente conectada, explica o analista do ICMBio. “Nós precisamos que essas grandes áreas que ainda existem hoje não fiquem isoladas ao longo do tempo. Porque isso vai fazer com que haja problemas no fluxo genético e haja problemas relacionados à viabilidade da espécie no longo prazo”, conta.
“A importância desse refúgio nessa área é, em primeiro lugar, garantir a permanência de uma área de floresta suficiente para manter uma população mínima viável. De acordo com nossos cálculos, com 10 mil hectares você garante uma população mínima, com mais de 600 indivíduos”, reforça o biólogo e professor Marcelo Gordo, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
O professor, coordenador do Projeto Sauim-de-Coleira, executado dentro da UFAM, explica que o segundo motivo é prevenir a fragmentação. “Toda essa área do centro pro leste da distribuição do animal está sendo muito ocupada por agricultores. Tem uma demanda muito grande de especulação imobiliária e agricultura, então ela está sendo muito fragmentada. Então quanto antes a gente conseguir garantir a conservação de grandes blocos de floresta, que comportem algumas populações mínimas viáveis para garantir a diversidade genética dessa espécie, nos diferentes interflúvios ao longo da sua distribuição, mais perto de garantir a espécie a gente vai estar”, acrescenta.
De leste a oeste da distribuição do sauim, com a criação da UC, haveria uma Terra Indígena, um Refúgio, uma área militar, a Reserva Ducke e a RDS da Puranga Conquista. “Mesmo que esses blocos de floresta estejam relativamente distantes entre si, uma vez que eles estejam protegidos, a gente vai trabalhar junto com os proprietários na zona rural, as Reservas Legais, as APPs [Áreas de Preservação Permanente], para conectar esses grandes blocos de floresta. Com isso, nós vamos montando um quebra-cabeça com alguns blocos grandes de floresta e outras áreas fragmentadas entre esses blocos, mas em que é possível a gente trabalhar a conectividade”, completa o professor da UFAM.
Proposta avançada
A proposta do Refúgio de Vida Silvestre do Sauim-de-Coleira foi considerada uma das prioritárias durante oficina de trabalho realizada pelo ICMBio entre os dias 29 de janeiro e 2 de fevereiro. O evento, que reuniu servidores, pesquisadores e representantes da sociedade civil e de comunidades tradicionais, analisou um total de 219 propostas de criação e ampliação de UCs que estavam empilhadas na gaveta do órgão ambiental. A proposta do refúgio foi apontada como uma das que está em estágio avançado, com estudos prontos e conversas já em andamento com moradores da região.
“A gente espera ainda esse ano avançar com as audiências públicas, com as últimas conversas e estudos, para que de fato a gente consiga, quem sabe ainda em 2024, que saia o decreto de criação do refúgio”, conta o analista ambiental do ICMBio.
A articulação com os moradores da região já começou e a expectativa é estreitar esse diálogo nos próximos meses com associações, produtores rurais e setores do governo estadual. Em paralelo, será feita uma nova análise fundiária para refinar o desenho final da proposta.
Devem ser realizadas pelo menos três audiências públicas. Uma na região de Novo Remanso, distrito de Itacoatiara onde está situado o desenho da UC pro sauim; outra na sede do município de Itacoatiara ou de Rio Preto da Eva; e uma possivelmente em Manaus, para reunir os principais órgãos estaduais de Meio Ambiente, Regularização Fundiária e Agropecuária.
A previsão do ICMBio é realizar as audiências públicas ainda no primeiro semestre deste ano. “Temos uma certa pressa porque é uma área que sofre pressão antrópica e tem características um pouco sensíveis. Nós sabemos que nos últimos anos houve uma corrida para ocupação e regularização fundiária dessas áreas, mas a ideia é que tudo avance com muito diálogo”, reforça Diogo Lagroteria.
A espécie
O sauim-de-coleira (Saguinus bicolor) é um pequeno macaco amazônico que ocorre apenas numa restrita área do estado do Amazonas, entre os municípios de Manaus, Rio Preto da Eva e Itacoatiara. A espécie foi classificada como Criticamente Em Perigo de Extinção na última avaliação publicada pelo ICMBio.
Dono de uma aparência singular, seu nome científico faz alusão a sua pelagem bicolor, com metade do corpo coberto por pelos brancos e a outra metade castanha. De forma destoante do resto, sua cabeça é pelada e preta, o que ressalta suas orelhas pontudas.
Os sauins vivem em grupos familiares compostos por 2 a 10 indivíduos. Seu comportamento é territorialista e cada bando defende sua porção de floresta – uma área de tamanhos que podem ir de 12 a 100 hectares, a depender das condições da mata e das plantas que a compõem. De acordo com dados de densidade populacional baseados em áreas de floresta primária na zona rural e na Reserva Ducke, os pesquisadores estimam uma população total de 36 mil sauins-de-coleira na natureza.
Frutos carnosos fazem parte do cardápio do sauim – que come e ajuda a dispersar mais de 20 tipos de plantas frutíferas – junto com pequenos insetos, aracnídeos, caramujos, rãs e lagartos.
Um plano para salvar o sauim
A ideia de uma unidade de conservação federal e de proteção integral para garantir o futuro do sauim-de-coleira não é nova. A criação de UCs dentro do habitat do sauim-de-coleira é um dos objetivos do Plano de Ação Nacional (PAN) do Sauim-de-Coleira, que teve início em 2011 e já entra no 3º ciclo, com o objetivo de reverter o declínio populacional da espécie, classificada como Criticamente em Perigo de Extinção, o patamar de maior risco antes da extinção de fato. A estratégia é considerada crucial para impedir o avanço do desmatamento, motivado pela expansão urbana de Manaus e sua região metropolitana.
Há mais de uma década, os pesquisadores começaram a desenhar uma proposta, originalmente de uma Reserva Biológica, categoria mais restritiva ao uso e ocupação do solo. A proposta bateu na trave durante a administração de Michel Temer, em 2018, e depois foi esquecida na gaveta – junto com todas as outras propostas de novas UCs – durante os quatro anos de governo Bolsonaro.
Com o início do terceiro mandato de Lula (PT), a agenda de UCs foi retomada. Entretanto, a UC do sauim-de-coleira encontrou resistência entre proprietários rurais e setores do governo estadual, avessos à ideia de uma Reserva Biológica e da desapropriação de propriedades particulares sobrepostas aos limites da área protegida. Diante disso, optou-se por avaliar a recategorização da proposta como um Refúgio de Vida Silvestre. A categoria também de proteção integral, porém permite compatibilizar usos e ocupações no território, sem desapropriações. Sob essa nova configuração, o diálogo tem avançado com o governo do Amazonas e os moradores. Na região predominam assentamentos e plantações de abacaxi e banana.
“Quando pensamos em criar um refúgio, é justamente para salvaguardar que as pessoas possam continuar morando e trabalhando ali, desde que suas práticas não comprometam a conservação da espécie e seu habitat. Se essas propriedades mantiverem suas Reservas Legais, tiverem práticas de cultivo sustentável… é totalmente compatível com a conservação do sauim”, explica Diogo Lagroteria, que é coordenador executivo do 2º ciclo do PAN.
Além disso, o analista defende que a criação do refúgio pode ser uma oportunidade para os moradores e produtores rurais terem mais acesso à crédito, regularização fundiária e agregarem valor ao que eles produzem com o componente ambiental. “O produtor pode ganhar um selo de produtor amigo do sauim, coisas do tipo, que vão agregar valor ao produto dele”, afirma Diogo.
Atualmente, há poucas propriedades com títulos definitivos dentro dos limites propostos do Refúgio, localizado em florestas públicas não destinadas. E a maioria delas está apenas parcialmente sobreposta, o que facilitaria compatibilizar a área dedicada à Reserva Legal – na Amazônia de 80% do terreno que deve ser preservada – com a área protegida.
A realidade, entretanto, não é tão simples. Desde que a proposta da UC tornou-se pública, em seu caminho até a mesa do ex-presidente Temer, houve uma explosão de pedidos de regularização fundiária na área.
“É como se a notícia de que a unidade de conservação seria criada chegasse ao ouvido de todos os moradores locais e começasse, digamos assim, uma corrida para ocupar essas áreas antes que a reserva fosse criada. Porque se você for ver os documentos do INCRA, todos os pedidos por regularização fundiária dessas áreas são recentes, de cinco, seis anos para cá, depois que essa proposta já tinha se tornado pública. Então para mim não é coincidência”, avalia o analista do ICMBio.
Apesar da corrida para ocupação, a área da proposta ainda está bem preservada, garante Diogo. “Por mais que haja alguma ocupação no entorno, temos pelo menos 10 mil hectares, que é a área mínima necessária para o sauim, muito bem preservados, que constituem a área nuclear desta proposta, onde não há moradores, nem ocupação. No zoneamento do refúgio, essa seria uma zona de proteção mais intensiva, e o entorno, esses cerca de 5 mil hectares, seria uma zona compatível com o uso público”, explica Diogo Lagroteria.
O cálculo fundamental de 10 mil hectares não é à toa. Os pesquisadores estimaram que esse é o tamanho mínimo de área que garante uma população viável de sauim-de-coleira ao longo prazo.
“A criação de uma unidade de conservação federal de proteção integral para o sauim-de-coleira, com pelo menos 10.000 hectares, é imprescindível para mantermos uma população viável da espécie em longo prazo e, com isso, tentarmos evitar a extinção deste que é um dos mamíferos mais ameaçados da Amazônia e mais de uma vez listado entre os 25 primatas mais ameaçados do mundo”, reforça o primatólogo Leandro Jerusalinsky, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB/ICMBio).
Duda Menegassi
Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica