Plano Conservador da Mantiqueira quer restaurar 1,5 milhão de hectares de floresta
Às 9 horas de uma segunda-feira, com a vista inundada de montanhas e céu azul, saímos da sede do Conservador das Águas em Extrema, Minas Gerais, num carro 4×4. Arlindo vai proseando com aqueles que cruzam o seu chão. Encosta o carro para falar com um. Dá marcha à ré para falar com outro – ambos proprietários rurais que aderiram ao projeto Conservador das Águas.
“Tudo o que você vê de cobertura florestal em topo de morro é plantio nosso”, conta Benedito Arlindo Cortez, enquanto aponta o pico verde de uma montanha. “Tínhamos 5% de cobertura florestal nessa sub-bacia. Hoje temos mais de 30%”, diz o coordenador do Conservador das Águas, referindo-se à sub-bacia do Rio Ribeirão das Posses, afluente do Rio Jaguari, o principal veio do Sistema Cantareira, que abastece até 9 milhões de pessoas em São Paulo e mais de 3 milhões em Campinas.
O projeto Conservador das Águas foi lançado em 2005 em Extrema com o objetivo de proteger os mananciais do município de cerca de 35 mil habitantes, encravado na Serra da Mantiqueira, região de Mata Atlântica que chega a altitudes de quase 3 mil metros e nascedouro de muitas águas que abastecem os centros metropolitanos no Sudeste.
O projeto propõe a adequação ambiental de propriedades rurais por meio da restauração da vegetação nativa, privilegiando a Reserva Legal e as Áreas de Preservação Permanente (APP), como ao redor das nascentes, na margem dos rios e nos topos de morro. O Conservador das Águas estimula ainda a agricultura sustentável e a promoção de boas práticas de saneamento.
Com 2 milhões de árvores nativas plantadas desde seu início, o projeto se expandiu para municípios vizinhos e, em 2016, impulsionou a criação do ousado Plano Conservador da Mantiqueira, que tem o objetivo de reflorestar 1,5 milhão de hectares até 2030. É dez vezes a área do município de São Paulo.
Com abrangência em 425 municípios, ou 144 mil km2, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o plano engloba os municípios localizados nas bacias hidrográficas de influência da Serra da Mantiqueira, como as do Rio Grande, Rio Paraíba do Sul, Rio Tietê, Rio Piracicaba e Rio Mogi-Pardo, e alcança ainda as nascentes do Rio São Francisco e Rio Doce.
A geladeira vai brotar
Com economia sobretudo industrial e propriedades rurais destinadas à criação de gado de corte e leite, Extrema sustenta em sua praça central uma figura masculina banhada por um grande chafariz: chapéu na mão direita, cajado na mão esquerda, em uma representação do “homem do campo”. A estátua é uma homenagem ao projeto Conservador das Águas, idealizado por Paulo Henrique Pereira, que atuou como Secretário do Meio Ambiente de Extrema por 25 anos, entre 1995 e 2020.
“A água pra gente foi sempre o carro-chefe. A ideia é preservar os mananciais”, diz Paulo, que faz parte também do Comitê Gestor do Conservador da Mantiqueira. “O diferencial do projeto é que nós utilizamos um instrumento econômico que é o Pagamento por Serviços Ambientais para alcançar esses objetivos”.
Precursor em PSA no Brasil, o Conservador das Águas pagou mais de R$ 7 milhões a proprietários rurais por meio dos 300 contratos firmados com o município desde 2007. A área de restauração do projeto soma 8 mil hectares, incluindo florestas preservadas, áreas de agricultura sustentável e áreas de pastagem com conservação de solo. Do total de hectares, mil são de áreas restauradas com plantio total.
“A gente tem que proteger as nascentes, né? A gente já está de idade e tem água ainda”, diz Helias Alves Cardoso, proprietário rural que participa do projeto e reflorestou cerca de 4 hectares em sua propriedade, que tem um total de 18 hectares. “Se a gente não proteger, daqui a 20 ou 30 anos acabam as águas. Tem que ver quem está vindo hoje, os filhos da gente, os netos”, complementa o proprietário, que há 12 anos trabalha também no viveiro do Conservador das Águas.
Sobre a bancada, uma fileira de pequenas caixas abriga cores e formatos diversos: amendoim-bravo (Pterogyne nitens Tul.), angico-amarelo (Parapiptadenia rigida), pimentinha (Erythroxylum deciduum), urucum (Bixa orellana), pau-jacaré (Piptadenia gonoacantha), maricá (Mimosa bimucronata), e a fila continua até Thalyson abrir a geladeira, que a qualquer momento vai brotar. Lá dentro estão recipientes e sacolas com diferentes espécies de sementes hibernando até o momento certo de ganharem a terra.
O viveiro do Conservador das Águas produz entre 7 e 15 mil mudas por mês, variando de acordo com a estação do ano: no tempo quente há crescimento e abundância, no tempo frio o ritmo é encolhido. Uma variedade de 120 espécies nativas é cultivada ao longo do ano. As sementes são coletadas em campo e as árvores matrizes ou doadoras são sinalizadas por GPS para serem revisitadas na época certa nos anos seguintes. “A gente sente que está fazendo um trabalho que é valorizado por muitos”, diz Thalyson Augusto Ferreira, engenheiro florestal responsável pelo viveiro.
As árvores como religião
“A igreja do nosso povo Xucuru Kariri é um pé de árvore”, diz Jânio Ferreira do Nascimento, conhecido como cacique Jal. “Se acabarem as nossas árvores, está acabando a nossa família indígena. Faz parte da nossa religião as árvores porque nós fomos ensinados a cuidar da natureza”.
Os Xucuru Kariri, originários de Alagoas, são os primeiros a constituir uma aldeia indígena no sul de Minas Gerais, entre os municípios de Caldas e Santa Rita de Caldas. Há 20 anos ocupando a área de 52,3 hectares, os indígenas aderiram ao Plano Conservador da Mantiqueira. Os 2,3 hectares em processo de reflorestamento já foram cercados, a terra foi trabalhada e, em breve, receberá o plantio de mudas nativas, realizado por empresa privada por meio de compensação ambiental.
Para além dos hectares já em processo de restauração, a equipe do Conservador da Mantiqueira, em visita aos Xucuru Kariri, dialogou com os indígenas sobre possibilidades para melhor aproveitamento das terras, incluindo o desenvolvimento de sistemas agroflorestais, o plantio de frutíferas e outros projetos de interesse dos cerca de 140 membros da aldeia.
“Todo esse trabalho busca não só uma melhoria da qualidade da terra indígena na questão ambiental, mas também a sustentabilidade a longo prazo da própria sobrevivência do povo indígena”, diz Adriana Kfouri, integrande do Comitê de Gestão do Conservador da Mantiqueira. “O trabalho de restauração tem potenciais sociais e econômicos. A ideia é que a gente tenha a área de restauração e que a floresta tenha valor”, complementa a também diretora da região da Mantiqueira na The Nature Conservancy (TNC).
“Tinder da restauração”
Para promover o reflorestamento, o Conservador da Mantiqueira apoia a criação de políticas públicas locais, contribui para a capacitação técnica e fortalece a governança ambiental dos municípios. Na sequência, ajuda a conquistar o engajamento do produtor rural e a trazer os recursos para a restauração acontecer. Despertar o interesse do produtor rural é parte fundamental para o sucesso.
“Todos os produtores com quem eu converso que têm uma nascente estão aderindo, porque estão vendo que é em benefício próprio deles, não dos outros”, diz Carlos Delatesta, Secretário de Agricultura e Pecuária de Caldas, que aderiu ao plano em sua propriedade e divulga os benefícios entre outros produtores. “Espero que o povo da cidade mais pra frente também seja beneficiado, né? Porque se a gente preservar aqui na nossa região, na nossa casa, futuramente vai ter mais água. Eu estou com 55 anos. O que eu via há 20 anos… hoje as águas minguaram demais”.
Também em Caldas, Alexandre Henrique Gomes herdou cerca de 60 hectares em propriedades rurais. Seu pai era português e tinha, segundo o filho, uma mentalidade conectada com a restauração. Assim, Alexandre herdou junto com as terras o gosto pela preservação.
“A mudança é bem acentuada. Eu já cerquei mais uma área lá em cima e já começou a sair olho d’água”, conta para a equipe de sete mulheres do Conservador da Mantiqueira. “Vocês viram aí do lado essa especulação? Não pode deixar destruir uma coisa dessas”, diz, referindo-se à mineradora, vizinha de sua propriedade, que aparece na imagem de satélite que ele carrega impressa nas mãos.
“É visível como a gente tem uma presença maciça das mulheres dentro dos projetos municipais do Conservador da Mantiqueira”, diz Priscila Bueno, Secretária de Meio Ambiente de Santa Rita de Caldas, que vem liderando a expansão do plano na sua região. “Hoje as mulheres são maioria e têm feito todo o trabalho do Conservador. Elas fazem as ações de planejamento, de diagnóstico ambiental, realizam os projetos e vão fazer o trabalho de campo junto com os produtores rurais.”
Para ajudar a visualizar a hidrografia da região, as APPs e os números do CAR (Cadastro Ambiental Rural), a The Nature Conservancy, com colaboração do Mapbiomas, elaborou a plataforma Portal da Mantiqueira. O instrumento geoespacial ajuda a conectar os terrenos disponíveis para reflorestamento aos proprietários interessados e é chamado afetivamente de “Tinder da restauração” por membros da equipe gestora.
Viabilizar a floresta
Cerca de 5 mil hectares já foram restaurados pelo Conservador da Mantiqueira. Mais de 150 municípios estão envolvidos de alguma forma no plano e 32 deles já têm implementada a legislação de PSA. Ainda que tenha sido promulgada este ano a lei que institui a Política Nacional de PSA, os municípios também precisam ter sua própria legislação com diretrizes específicas.
Ao aderir ao Conservador da Mantiqueira, cada município cria regras próprias. Dentre as diretrizes do plano está o pagamento por hectare restaurado, o que significa em média R$ 300 por hectare ao ano, mas as condições e formas de trabalhar podem variar de acordo com a legislação de cada município. Extrema, que foi o município precursor, paga aos proprietários rurais participantes não apenas pelos hectares restaurados, mas pelo total de hectares da propriedade.
Os anos acumulados de experiência em restauração mostraram que há várias formas de fazer a floresta renascer: pode ser por meio da regeneração natural, pelo plantio de mudas ou pela muvuca, a mistura de sementes nativas que está sendo testada na Mata Atlântica.
“Na implementação da restauração, a gente busca sempre ter mais efetividade do uso do recurso, que é escasso. Assim, a gente consegue atender a nossa necessidade de escala pra urgência que a gente tem em fazer a restauração acontecer”, diz Adriana Kfouri. “A gente tem urgência na questão hídrica e na questão climática”.
Para estudar as melhores opções de restauração e ter apoio técnico, o Conservador da Mantiqueira teceu parcerias com instituições de ensino, como é o caso do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS). Em 2019, foi implementada uma unidade demonstrativa de restauração florestal de 1,5 hectares dentro do campus do instituto, situado no município de Inconfidentes, em Minas Gerais. Lá, são avaliadas as técnicas mais efetivas para o perfil da Serra da Mantiqueira.
Outra questão fundamental são os recursos para viabilizar a restauração, que podem vir de diversas fontes: o próprio município, empresas privadas por compensação ambiental, o Comitê de Bacias Hidrográficas, organizações não governamentais e, mais recentemente, também por meio dos créditos de carbono.
Gerenciado pela TNC, o projeto de créditos de carbono conta com financiamento da empresa de e-commerce Mercado Livre, que criou o programa Regenera América para compensar suas emissões e investiu inicialmente R$ 45 milhões em iniciativas de restauração da Mata Atlântica.
“A gente já conseguiu a adesão de sete proprietários rurais”, diz Adriana, referindo-se aos contratos assinados para a geração de créditos de carbono. “A gente tem o desafio de fazer a implementação de 2,7 mil hectares e esses sete contratos já trazem mais ou menos 20% dessa área. A ideia é que nos próximos meses a gente avance bastante nesse engajamento que já está acontecendo”.
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Em 2018, Extrema desenvolveu seu próprio programa de créditos de carbono, chamado Extrema no Clima. O programa prevê a neutralização de gases de efeito estufa dos empreendimentos do município, e o próprio município trata de neutralizar as emissões dos moradores.
“As empresas precisam apresentar seu inventário de emissões. A gente calcula a quantidade de árvores necessárias para neutralizar essas emissões e ela faz o pagamento”, conta Paulo Pereira, ex-Secretário do Meio Ambiente de Extrema, mencionando também a estratégia de neutralizar as emissões dos moradores do município. “A pessoa que tem um veículo emite gás de efeito estufa. O cidadão paga o IPVA. A gente pega uma parte do IPVA para neutralizar as emissões do cidadão e aplica isso no Conservador das Águas.”
“Não adianta nada um município ter um departamento ambiental e ficar preso em agenda negativa de cumprir burocracia, de autorizar um corte de árvore”, diz Priscila Bueno. “O que vale mesmo é ter uma agenda positiva. Quais são os projetos ambientais, sociais e econômicos que aquele departamento consegue manter no município?”
Com a intenção de acelerar a restauração, foi lançada este ano pela ONU a Década da Restauração de Ecossistemas, que segue até 2030.
Imagem do banner: Helias Alves Cardoso no viveiro do projeto Conservador das Águas em Extrema (MG). Foto: Sibélia Zanon.
Fonte: Mongabay